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O verde
das campinas deu lugar para o cinza do outono da cidade de Leicester. A fumaça
saindo das chaminés das fábricas impregnava o ar. Grupos de jovens com seus
trajes impecáveis caminhavam pelas calçadas sujas da cidade com cigarros e
bebidas, parecendo que o tempo não fazia a menor diferença. Mas, o tempo fazia
diferença sim…
…tudo
escureceu quando o trem entrou em um pequeno túnel. Mas logo ouvi murmurinhos
de pessoas e quando olhei pela janela vi a estação lotada. Fiquei abismada.
Aquela não era nem de longe a mesma estação de 1914, antes da maldita guerra
eclodir. Senti um aperto no peito. Baixei a cabeça e encarei o diário sobre
minhas pernas. Fechei-o. Aquelas páginas já gastas continham muita história,
algumas tristes, outras alegres e, muitas delas, vividas ali, pelas ruas
daquela cidade. Guardei-o na minha nécessaire, pois logo já tinha que descer.
Sentada
no banco gasto desse trem, meu destino é incerto. Perdi tudo que me prendia ao
lugar que vivi por 10 anos e agora, sozinha retorno para minha cidade. Desde
que tomei esta decisão, minha mente esteve presa por diversas questões: o que
farei para sobreviver? será que meus amigos ainda moram no mesmo lugar? o que
será de mim, jovem e sozinha na Inglaterra? Tentei dormir inúmeras vezes durante
esta viagem, mas a excitação, a ansiedade e o medo da nova vida me atormentaram
à cada instante.
O trem
parou na estação já era tarde da noite. As ruas estavam quase vazias e havia
pouca iluminação. Eu vestia um casaco de cor vinho que ia até minha panturrilha,
um vestido azul forte e botas pretas até o joelho. Enrolei melhor meu echarpe
de cor preta ao pescoço quando senti o vento frio do outono bater. Joguei meus
cabelos loiros para trás e respirei fundo. Sim, eu estava de volta. Luvas
sempre achei um exagero, mas confesso que elas fizeram falta. Aquele vento
estava congelando meus dedos. Peguei minha única mala de mão e caminhei para
além da estação até chegar nas ruas. Olhei para os lados e tudo estava muito
diferente. O lugar parecia ainda sofrer as consequências da grande guerra. Me
bateu um medo neste momento.
As ruas
estavam quase sem iluminação e já não havia ninguém fora de suas casas. Olhei
no meu relógio de bolso e estava perto da meia noite. Provavelmente seria
difícil encontrar alguma pousada ou pensão que pudesse me abrigar aquele
horário. Sentindo a frustração querer tomar conta de mim, entrei
desesperadamente no primeiro bar que vi. Sempre considerei o álcool sinônimo de
problema, mas ele também me acalmava quando sensações ruins tentavam me domar.
Fui até
o balcão e pedi um whisky. O homem do outro lado me encarou com uma expressão
surpresa, mas me serviu assim que mostrei que tinha dinheiro. Sentei em uma
bancada e fiquei ali mesma, com meus pensamentos e o meu whisky, só observando
pelo espelho o pouco movimento daquele pub aquela hora da noite. Talvez não
fosse a noite de badalação do lugar, pois era meio de semana e só se via alguns
bêbados ao redor das mesas de madeira e algumas mulheres da vida se oferecendo
para alguns poucos jovens. De repente um homem de sobretudo escuro se aproximou
apoiando o cotovelo sobre o balcão ao meu lado. Ele ficou à me observar,
percorrendo o meu corpo com um sorriso no rosto. Fingi não vê-lo, mas ele
tossiu secamente para chamar minha atenção. Terminei meu whisky e pedi mais uma
dose, prontamente atendida pelo homem entediado do outro lado do balcão. Pensei
comigo: ” vamos brincar e ver até onde esse aí vai”. Encarei o cafajeste ao meu
lado e seu sorriso ficou maior.
– O que
uma moça tão linda faz sozinha à essas horas em um bar? Aqui não é lugar para
damas. – disse ele mostrando as mulheres que ali se faziam presentes.
– Vai
ver eu não seja uma dama. – respondi cruzando as pernas deixando-as a mostra e
exibindo a fenda lateral do meu vestido.
–
Ahhhh, entendi! – respondeu-me se aproximando e pondo a mão sobre minha coxa
apertando-a.
– O que
pensa estar fazendo? – perguntei em um tom mais alterado e ele riu.
Ele
segurou meu pulso com força e me puxou em direção à uma porta dos fundos. Eu
não aceitaria aquilo de maneira alguma, podia ser qualquer coisa, menos aquilo
que ele pensou que eu fosse. Lhe acertei um forte chute no meio das pernas e
ele caiu de joelhos à minha frente. Soltou meu braço e, gemendo de dor, levou
as duas mãos aonde eu acertei.
– Sua
vagabunda! – ele berrou aos quatro cantos e todos os presentes já estavam
atentos para nós.
Cuspi
ao lado do desgraçado e dei as costas para ele pegando minha mala que estava no
chão apoiada ao balcão. O homem do bar observava tudo. Sorriu para mim
parecendo aprovar minha atitude. Perguntei sobre alguma pensão ali perto e ele,
imediatamente, anotou um endereço em um pedaço de papel me entregando. Indo em
direção à saída do bar, o homem que me atormentava ainda teve a audácia de
agarrar meu casaco me impedindo de seguir. Lancei um olhar de indiferença,
coloquei a mão por dentro da minha nécessaire e logo lhe dei um soco no nariz
fazendo-o sangrar e gritar de dor.
– Sua
desgraçada! Quebrou meu nariz! – ele berrava e ninguém se importava.
Olhei
ao redor, guardei meu soco inglês novamente e segui meu caminho.
Stanley’s
PubHouse estava escrito em uma placa com luzes amareladas. Parecia estar
fechado, então bati a aldraba três vezes e aguardei. A porta se abriu e uma
mulher de pele clara e cabelos cacheados presos em um coque alto, apareceu.
Olhou para ambos os lados da rua deserta e me encarou de cima a baixo.
– Ainda
tem quartos para alugar? – perguntei à ela.
–
Depende. Entre rápido, o frio tá de congelar. – ela respondeu.
Fiz o
que ela pediu e só então notei que devia ter lhe acordado. Ela usava uma
camisola de tom claro e estava tremendo de frio. Reparei no local, móveis e
decorações nada muito luxuoso, mas bastante aconchegante.
–
Gostou? – ela perguntou acendendo um cigarro.
– Sim.
– respondi firme e a encarando.
– Muito
bem. Já tá tarde… – ela encarou o relógio grande na parede.
Fiquei
um pouco envergonhada e ela continuou.
– … só
preciso que responda algumas perguntas, pode ser? – ela pediu se dirigindo para
trás de um balcão de madeira.
– Sem
problemas. – respondi.
– Usa
algum tipo de droga? – começou ela.
– Não
senhora. A não ser que cigarro e bebidas alcoólicas estejam na sua lista. –
respondi.
–
Trabalha com algum tipo de prazer? – continuou ela, sempre dando uma tragada
entre uma pergunta e outra.
– Não.
– respondi franzindo a testa.
–
Ótimo. – ela finalizou pegando algo debaixo do balcão.
Era uma
chave pequena e dourada presa à um chaveiro de metal com o número quatro. Ela
me entregou e, em seguida, me alcançou um documento. Passei os olhos e notei
ser um simples contrato.
–
Assine aqui. – falou ela colocando o dedo indicador de unha vermelha sobre uma
linha no final da página.
Peguei
a caneta, preenchi o documento e assinei, notando que aquela mulher não tirava
os olhos de mim.
– O
pagamento é semanal. Pode me pagar no final desta semana. – disse ela.
Entreguei
a caneta em mãos para a mulher atrás do balcão. Virou a página para si
conferindo os dados no documento.
– Temos
três regras. – falou-me em tom seco. – o que acontece aqui, permanece aqui. Não
interfira nos assuntos que não são da sua conta e a mais importante…
Ela
encarou-me com os seus olhos castanhos e grandes.
– …meus
sobrinhos e meu filho estão aqui quase sempre. Então, fique longe deles, pro
seu próprio bem. – ela me falou e sorriu no final. – faça isso e nos daremos
muito bem.
Apenas
concordei com a cabeça.
– Então
senhorita… – ela olhou para o documento checando o meu nome. – … Alisson
Parker, seja bem vinda. A propósito, pode me chamar de Val. Valquiria Stanley.
Lhe
estendi a mão e ela repetiu o mesmo gesto. Depois, segurando minha mala,
caminhei até a escada e sumi das vistas de Val.
Entrei
no quarto e larguei a mala ao lado de um roupeiro de duas portas à minha
direita. Tirei o casaco e pendurei em um cabideiro próximo à janela de cortinas
floridas. Aproveitei e puxei a cortina espiando lá fora. A vista dava para o
lago que cortava a cidade. Estava nublado demais, mas pude notar que alguns
homens de ternos e chapéus ou boinas, carregavam algumas caixas suspeitas em
uma embarcação que estava atracada por ali. Era visível que se tratava de algo
proibido, pois um outro homem apenas orientava a ação e olhava atento para
todos os lados. Fechei a cortina rapidamente, sentei-me na cama e percebi o
quanto a fé estava presente naquele lugar. Havia uma bíblia aberta em cima do
criado-mudo e a imagem de prata de Cristo pregado na cruz pendurada sobre a
cabeceira da cama. Tirei as botas e as meias e joguei-me na cama. Adormeci sem
nem ao menos trancar a porta e apagar a luz.
No dia
seguinte acordei tarde com os tímidos raios do sol invadindo o quarto pelas
finas cortinas floridas. Levantei relutante e, só então, percebi que havia uma
cômoda em frente à cama e um espelho na parede sobre ela. Tirei meu vestido e
fiquei alguns longos segundos observando o meu reflexo. Aquela cicatriz eu iria
carregar pelo resto da minha vida. Toquei ela no início, acima do meu seio
direito, e percorri as linhas salientes que subiam pelo ombro e finalizavam na
minha escápula. Pude ouvir os gritos e o apito ensurdecedor do trem antes que o
mesmo perdesse o rumo e saísse dos trilhos. Por sorte, muita sorte, eu
sobrevivi. Mas aquela cicatriz me faria lembrar pra sempre que alguém me deu
uma segunda chance nesta vida. Voltei para a realidade e fui pegar uma toalha
na minha mala. Enrolei-me e notei que não havia banheiro no quarto.
Provavelmente é um só para todos os hóspedes. Abri a porta e espiei. No fundo
do corredor havia uma porta com uma placa acima escrito “Banheiro”.
Caminhei
um pouco ressabiada até o banheiro e, antes que pudesse pôr a mão na maçaneta,
a mesma moveu-se e a porta se abriu. Tomei um susto quando o vi. Sim, uma
figura masculina, alto, com o físico forte e definido. Tinha os olhos cor de
mel e estava com uma toalha felpuda enrolada na cintura. Seu cabelo caía sobre
os olhos e havia gotículas de água pelo seu corpo. Ele quase esbarrou em mim,
então segurou-me pelos ombros e fitou minha cicatriz. Fiquei envergonhada e ele
sorriu.
–
Desculpe, não vi você! – ele disse com sua voz firme e gentil.
Sorri
timidamente. Mantive a cabeça baixa. Ele tirou as mãos dos meus ombros e
estendeu a mão direita pra mim.
– John
Stanley. – disse ele. E foi aí que percebi que tratava-se de um daqueles que
Val pediu para que eu ficasse longe.
–
Prazer, Alisson Parker. – respondi lhe estendendo a mão.
Ele
sorriu olhando dentro dos meus olhos e ainda comentou sobre a cena inusitada de
nos conhecermos enrolados em nossas toalhas em frente ao banheiro. Senti-me
ficar corada naquele momento. Foi quando ouvimos passos na escada e nos
viramos.
– John,
vamos. Terry e Ferdinand já estão lhe aguardando. Os negócios não podem
esperar. – falou Val se deparando com nós dois e me lançando um olhar que
poderia me partir ao meio.
– Até
mais então! – disse John se atrevendo à né beijar na bochecha neste instante.
Nem
tive coragem de encarar Val novamente. Entrei depressa no banheiro e fechei a
porta. Fiquei com as costas apoiadas na porta do lado de dentro e ainda escutei
uma pequena discussão entre Val e o seu filho. Sim, John era o filho dela.
Droga! Espero não ter me encrencado.
Depois
de um banho rápido voltei ao quarto e coloquei um vestido bege simples e
casual, nada extravagante. Peguei um casaco de linho preto, um chapéu claro e
desci as escadas. Na recepção não havia ninguém. Ainda bem. Não queria ver Val
aquela hora. Saí do lugar e senti aquele clima abafado e úmido, típico do
outono de Leicester.
Comprei
um jornal na banca da esquina, verifiquei vários anúncios de emprego, mas a
maioria só contratavam homens, e se queriam mulheres era para serem garotas de
programa. Voltei apenas no final da tarde, sem progresso e frustrada. Entrando
na pousada me deparo com três homens de ternos alinhados conversando com Val,
sentados confortavelmente em poltronas estofadas.
Dois
dos três homens usavam ternos cinza e um usava terno preto. Eles conversavam
seriamente com Val enquanto bebiam e fumavam. Reparei em Valquiria que usava um
vestido branco singelo com alguns adereços floridos. Ela largou o cigarro no
cinzeiro sobre a mesa e ficou me encarando quando entrei. Vi que um dos homens
era John, os outros, provavelmente, seriam Terry e Ferdinand, sobrinhos de Val.
John ficou me observando até que sumi nas escadas. Mas não me contive e parei
escorada na parede lateral tentando escutar o que falavam. Sei que isso não é
correto, mas me parecia algo muito importante. Não tive sorte. Espiei e os três
homens já se levantavam se despedindo de Val. John colocou uma boina preta e os
outros dois colocaram seus chapéus de cor cinza. Ela abraçou cada um deles
demonstrando muito carinho e afeto por todos e entregou à cada um algo que eu
não consegui identificar de onde eu estava.
Me
surpreende não ter muita gente hospedada por aqui, talvez seja a época do ano
ou então o lugar seja muito seletivo com os seus hóspedes. Fora eu só vi mais
duas discretas mulheres e um homem mais velho. Voltei rápido para o meu quarto,
peguei uma toalha, tomei mais um banho e vesti algo confortável. Desci
novamente sentindo um cheiro bom pelo ar e o ouvindo barulho de pratos. Quando
me avistou chegando ao pé da escada, Val, que estava arrumando as mesas do
salão, me falou que as três refeições estavam inclusas no aluguel. Fiz meu
prato e sentei em uma mesa de canto.
Val
veio até onde eh estava com uma jarra de suco e um copo e me serviu.
–
Obrigada. – agradeci e antes que ela se retirasse ainda pedi se ela poderia me
dar algumas informações.
–
Depende. – respondeu ela segurando a jarra com uma das mãos.
– Não é
nada demais. Suponho que você more aqui faz tempo, correto?
–
Incorreto não está…por que? – disse ela largando a jarra na mesa.
– Nasci
e morei aqui até os 10 anos, mas parece que as coisas mudaram bastante… – eu
comecei e logo tomei um gole do suco que ela me serviu.
Val
olhou para os lados, para o salão vazio naquele horário e puxou uma cadeira
sentando na minha frente.
–
…durante todo esse tempo que estive fora, sabe me dizer onde fica este
endereço? – pedi à ela pegando um pedaço de papel dentro da minha blusa e
colocando-o sobre a mesa.
Val
pegou o pedaço de papel e leu largando-o novamente na mesa.
– Essa
rua não existe mais. Tudo lá foi demolido para a construção de uma fábrica.
Você morava lá? – me perguntou ela.
– Morei
por alguns anos. Obrigada pela informação. – respondi baixando a cabeça.
Fiquei
um tanto triste por não existir mais o lugar que ainda recordava com tanto
carinho. Comi em silêncio após Val pedir licença e se retirar. Levantei, lavei
meu prato em uma pia conjunta e saí para as ruas. Caminhei sem rumo apenas
tentando entender no que Leicester tinha se tornado após o fim da grande
guerra. Conferi as horas no relógio grande da catedral e, já passavam das 21:00
horas quando entrei em um bar chamado “The Garage’s”.
O
movimento era bastante intenso. Conversas, gargalhadas, brindes e aquele cheiro
forte de bebidas e cigarros. Não dei muita importância para os olhares
masculinos se dirigindo para mim e caminhei até o balcão. Sentei-me e pedi um
whisky.
– É
muita coincidência nos encontrarmos denovo. – uma doce voz masculina ecoou ao
meu lado.
Peguei
o copo cheio com uma mão e com a outra já encaixei os dedos no soco inglês no
meu bolso. Viro para o lado e me surpreendi ao ver John sentando na banqueta e
largando a boina preta em cima do balcão. Esboçava um sorriso encantador
enquanto mordiscava um palito de dente.
– Pelo
jeito Leicester continua uma cidade muito pequena. – respondi e olhei ao redor
onde o clima havia mudado e todos pareciam mais contidos.
Olhei
para uma mesa em um canto mais reservado e obscuro e deduzi o motivo de todos
estarem mais quietos. Além de John, seus primos Terry e Ferdinand também se
faziam presentes junto de um grupo de chineses mal encarados.
– John,
vamos! Não podemos esperar pelas tuas paqueras. – gritou Terry chamando por
John.
– Acho
melhor você ir. – eu lhe disse sorrindo.
John
levantou-se pegando a sua boina. Passou pelas minhas costas e disse baixinho no
meu ouvido para que eu aguardasse a reunião deles que ele queria falar comigo.
Não lhe respondi nada. Apenas tomei em uma só vez o meu whisky e fiquei
observando ele se juntar aos demais. Queria ser uma mosquinha para ouvir do que
se tratava aquela reunião.
As
horas passaram. Tomei mais algumas doses de whisky, fumei alguns cigarros e
deletei-me com a apresentação musical de uma jovem moça no tímido palco montado
no canto oposto da mesa em que se dava a reunião.
Um
chinês, o mais baixinho do grupo, se levantou e Terry fez o mesmo. Ambos
estenderam as mãos e se cumprimentaram. Foi só após este cumprimento que os
demais se ergueram de suas cadeiras. Neste momento o ambiente já estava bem
mais calmo. A moça cantava uma canção triste que falava da guerra e suas perdas
enquanto os chineses se retiravam do local. Ferdinand chamou um garçom fazendo
algum pedido, que logo foi atendido.
Depois
que o garçom entregou o pedido feito por Ferdinand, os três brindaram e beberam
seus whisky’s. John me viu olhando para a mesa deles, pegou uma garrafa, se
levantou e caminhou na minha direção. Senti um frio percorrer pela minha
espinha neste momento. Aquilo me foi alertado. Era uma das regras da Val. Fique
longe dos meninos dela! Mas o que iria fazer, se eu era um ímã para este tipo
de coisas? Ele chegou e puxou a banqueta para bem perto de mim. Sentou ao meu
lado e encheu meu copo que estava vazio e o dele.
–
Encontrar você sem estarmos enrolados em toalhas merece um brinde. – disse ele
erguendo o seu copo.
Eu ri.
Brindemos.
– Sua
mãe me mata se souber que estou falando com você!
Tirei
um cigarro da minha nécessaire e coloquei na boca. John acendeu para mim.
– Dona
Val e suas ameaças. Garanto que se eu pedir com jeitinho ela deixa você viver!
Tomei
um gole do meu whisky enquanto observei que Terry e Ferdinand não tiravam os
olhos de nós.
– Seus
primos não estão muito contentes em te ver aqui comigo. – disse à John.
– Eles
têm medo de Val nos ver assim! – respondeu John.
– E não
corre o risco dela vir ver se vocês trataram bem dos negócios? – perguntei
dando uma tragada no cigarro e ansiosa por uma resposta que me levasse a
deduzir o que seriam estes negócios.
John
apenas me observou e acendeu um cigarro.
– Os
negócios dos Stanley’s são intocáveis, cara Alisson. E, respondendo a tua
pergunta, não. Não corremos esse risco. Val confia em nós. – respondeu-me ele.
John
era bem seguro de si. Um tanto atrevido, mas seguro nas suas palavras. Me perguntou
de onde eu vinha e eu lhe respondi que nasci e morei em Leicester até os meus
dez anos de idade.
–
Cresceu nestas ruas e fugiu antes da maldita guerra eclodir? – perguntou ele.
– Sim.
Fomos para o litoral grego e vivemos dias felizes lá… até uma peste dizimar
metade da vila e levar meus pais. – respondi à ele.
John
sentiu que fiquei abalada em relembrar disto. Pediu desculpas se mostrando um
homem sensível. Falei que não precisava se desculpar. Que este era o meu
passado e eu precisava aprender a conviver com ele, porque o pior erro do ser
humano é querer negar e esquecer o que ficou para trás. Cresça, amadureça, mas
nunca esqueça o que passou. Isso te faz forte à casa dia que passa.
– Mais
algo que lhe atormenta? – perguntou John entendendo que eu não né importava em
responder.
– 15
anos de idade… – comecei respondendo.
John se
ajeitou na banqueta interessado na minha história. Terry e Ferdinand,
cambaleando de bêbados, passaram por nós acompanhados de duas prostitutas.
– Vai
ficar, John? – perguntou Terry.
–
Divirtam-se! – apenas respondeu John.
Eles se
retiraram e John voltou sua atenção para mim.
– 15
anos de idade… – disse ele.
Dei
mais uma tragada no cigarro e bebi o resto do whisky no meu copo.
–
…sofremos um terrível acidente de trem em uma viagem no sul da Itália. Fiquei
entre a vida e a morte. Mas parece que alguém lá em cima achou que eu merecia
mais uma chance.
John
encheu o meu copo novamente.
– Sabe
a cicatriz que você já viu? É a marca que carrego deste acidente. – falei para
ele.
Dei a última
tragada no cigarro e olhei ao redor o local já vazio.
– Posso
ver novamente? – perguntou John.
Sua
expressão era ilegível, mas aquele olhar podia me convencer a fazer qualquer
coisa.
– Não
aqui…tem algum lugar mais reservado?
Ele se
levantou e me pegou pela mão me levando até uma porta ao lado do balcão.
Abriu-a e deu lado para que eu entrasse primeiro.
– À
vontade. – disse ele.
Entramos
e John fechou a porta atrás de si não desgrudando os olhos de mim por um
instante. A luz fraca e amarelada iluminava um pequeno cômodo com uma cama de
casal e um roupeiro velho. Mãos ao lado havia uma outra porta. Era tudo
simples, mas aconchegante aquele lugar. Virei de costas para John.
– Abre
o zíper pra mim?
Ele
suspirou e se aproximou. Lentamente foi abrindo o zíper do vestido, que teria
caído no chão se eu não o tivesse segurando contra meu corpo. Senti suas mãos
frias afastando meu cabelo e passando pelo feixe do sutiã. Relaxei e deixei o
vestido cair, me virando para ele. Deixei-o tirar meu sutiã e ele, delicadamente,
passeou as mãos pela minha cicatriz me causando involuntários arrepios. Que se
dane o que a Val disse, pensei comigo. Ele acariciou meu rosto e me beijou.
Seis
Meses Depois
Ao
redor de uma mesa no salão do Stanley’s PubHouse, John, Terry e Ferdinand
bebiam comemorando enquanto eu e Val estávamos de pé atrás do balcão apenas os
observando.
– À
John! – Terry disse erguendo o copo para cima.
– À
John! – repetiu Ferdinand.
Val
sorriu e me encarou. Fez sinal com a cabeça me chamando para seu escritório que
ficava em uma salinha nos fundos. A segui, entramos e ela fechou a porta. John
sempre dizia para mim: “se Val te chamar para o escritório, o assunto é sério!”
Fiquei apreensiva, afinal tinha motivos para ser um assunto sério. John me
pediu em casamento no almoço de hoje, na frente de todo mundo e eu aceitei. Val
não tinha esboçado nenhum tipo de reação e agora fez este chamado. É claro que
eu ficaria aflita.
O
escritório era aconchegante e com um toque requintado. Uma mesa retangular com
cadeiras estofadas em um tom de azul escuro, prateleiras nas laterais com
livros e arquivos e na parede atrás da mesa alguns quadros, pinturas abstratas
de artistas famosos.
–
Sente-se. – disse Val se dirigindo para o seu lugar.
Sentei
e fiquei aguardando ela começar. Ela abriu uma garrafa de run que estava em
cima da mesa e serviu dois copos.
– O que
você sabe fazer? – ela me perguntou empurrando o copo cheio para minha frente.
– Como
assim? – retruquei sem entender direito.
– Ora,
agora se casará com meu filho. Eu não posso impedir isso. Você já sabe dos
nossos negócios, todas nossas fontes de rendas. Eu quero minha nora trabalhando
nos negócios da família. – disse ela para minha surpresa.
– De
tudo um pouco. – comecei a responder. – Sei ler e escrever. Fiz curso de primeiros
socorros e pintura na Grécia. Também sou boa com números.
– Hum,
tudo bem. Vai trabalhar diretamente comigo aqui na pousada. E em outros
serviços também quando eu precisar. Está bom para você?
– Está
sim. – respondi.
– Vai
receber conforme os serviços. Mas isso não será problema, pois agora você será
uma Stanley.
Val
virou seu copo de run de uma só vez e se levantou. Estendeu a mão na minha
direção.
–
Negócio fechado. – disse ela.
Levantei
e apertamos as mãos. Nisso a porta se abre e John e seus primos adentram o
escritório.
–
Interrompemos as senhoritas? – falou Terry.
– De
maneira alguma, Terry. Já acertamos nossos negócios. – disse Val.
John se
aproximou pegando minha cintura e me dando um beijo.
– Tudo
certo mesmo? – perguntou-me.
– Sim.
Está tudo acertado. – respondi. – Agora vou deixá-los à sós e vou cuidar dos
preparativos do nosso casamento.
Saí do
escritório e deixei os quatro sozinhos. Sabia que nesta semana estava pra
chegar uma frota com uma grande quantidade de armamentos vindo da Irlanda. Um
negócio bastante complicado, que estava tirando o sono de John e com certeza
fazendo o mesmo com sua mãe e seus primos.
Três
Semanas Depois
A
pequena e singela catedral de Leicester estava muito melhor do que eu imaginei
nos meus sonhos adolescentes. As flores que eu mais gostava enfeitavam os
bancos de madeira e a entrada da igreja. O dia estava radiante e os convidados
elegantes. Cheguei no carro de John, dirigido por um motorista contratado e na
companhia de Terry. Sim, ele fez questão de entrar na igreja comigo, pois eu
não tinha mais ninguém. Abriu a porta do veículo e me ajudou a descer. Eu usava
um longo vestido branco e um véu da mesma cor cobrindo o meu rosto. Suspirei
fundo ao ouvir a minha canção favorita começar a tocar. Terry deu o braço direito
para que eu enganchasse e tocou sobre a minha mão trêmula, demonstrando que ele
estava ali e eu não devia me preocupar com nada.
Chegamos
na porta grande da catedral e tudo que eu via era o meu John lá no altar à
minha espera.
– John
está nervoso. – cochichou Terry no meu ouvido.
Junto
de John estava o negro padre Ismaillah, com seus cabelos rastafari presos. Ele
era o homem de confiança dos Stanley’s na igreja. Quando começou tocar a
introdução da minha canção favorita eu e Terry demos o primeiro passo entrando
na catedral. Foi um momento único e especial para mim. Muitos ali presentes eu
nunca havia visto na minha vida, eram amigos e conhecidos dos Stanley’s e
muitos ali estavam por uma questão de status, eu sabia. Mas não importava. Na
verdade tudo que eu via era o meu John à minha espera.
Chegamos
em frente ao altar, Terry segurou meus ombros e sorriu simpático. Ele era um
tanto “louco”, mas eu gostava daquela criatura. Cumprimentou John com um aperto
de mão e se posicionou na primeira fileira de bancos ao lado do seu irmão
Ferdinand e de sua tia Val. Valquiria Stanley que, por sinal, estava
elegantérrima em um longo vestido verde musgo e um chapéu com uma flor ao lado.
Ela sorriu para mim. Eu sabia que aquela era a benção que eu precisava.
A
música cessou e John pôs as mãos em meus ombros. Sorriu e, delicadamente,
ergueu meu véu jogando-o para trás da minha cabeça. Me deu um beijo na testa.
Nos viramos para Ismaillah e retribuímos o seu sorriso sincero e amigo.
– Meus
queridos irmãos e irmãs! Estamos aqui reunidos para o matrimônio deste jovem e
belo casal…
Senti uma lágrima escorrer pelo meu rosto.
Aquele era o dia mais feliz da minha vida. Agora eu me tornaria a srta. Parker
Stanley, e este nome abriria muitas portas para mim.
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