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PARTE III - AS CRIANÇAS SEM ROSTOS
Casa de Magali no Subúrbio de Santa Helena
Duas Semanas Depois
Magali despertou assustada sentando na cama em seu quarto escuro. Ficou imóvel por alguns segundos e, só então, que criou coragem e acendeu o abajur em cima do criado - mudo. A pouca claridade revelou um ambiente pequeno e simples. Magali vestia uma camisola branca comprida e estava com os cabelos desdenhados. Passou a mão sobre a testa limpando o suor. Estava voltando à si. Já era a sétima vez que acordava desta forma desde que deixou a pequena Alicia no internato na colina.
Levantou-se e caminhou com uma certa dificuldade normal para a sua idade avançada. Parou diante de uma cômoda na parede em frente a sua cama. Baixou a cabeça e fechou os olhos pronunciando algumas palavras indecifráveis. À sua frente, em cima do móvel, várias imagens de santos espalhadas e quatro velas brancas acesas dispostas uma em cada canto.
Magali era conhecida na região pelo dom da paranormalidade desde a sua adolescência, quando os primeiros sinais vieram à tona. Em um passado remoto, Magali presenciou algo que fugiu ao seu controle e ela prometeu para si mesma que queria ficar longe deste dom. Mas isso não é algo que se pode escolher. Este dom pode estar adormecido por um longo tempo, mas se algo acontece que ele precise de manifestar, assim será. E você não terá escolha. Deixar a pequena bisneta no internato Santa Helena no alto da colina foi o estopim para que a sua paranormalidade voltasse a aflorar. Ela viu que algo fora do normal estava presente naquele lugar. Ela ouviu uma voz lhe dizer para salvar a menina. Mas ela ignorou. E agora estava pagando por isso, e iria pagar pelos poucos dias que ainda lhe restavam de vida se não fizesse algo para impedir.
Amanheceu um dia nublado e triste em Santa Helena, como quase todos os últimos dias nasceram. Magali carregou uma mala e colocou no banco traseiro do seu Fiat 147, entrou, ligou o veículo e pegou a estrada que levava para a colina. Ela precisava agir antes que fosse tarde demais. Ela não poderia deixar acontecer com sua bisneta o mesmo que aconteceu no seu passado recente.
Internato Santa Helena
A chuva caía incessantemente sem dar nenhuma trégua. Allegra, parada diante da janela do seu quarto tomando sua xícara de chá, olhava incrédula para além da floresta. Os últimos acontecimentos tinham mexido demais com sua pessoa e isso era nítido na sua aparência. Mais magra, pálida e com os olhos profundos com enormes olheiras demonstravam uma mulher que não sabia mais de onde reunir forças para salvar à si própria e as crianças sob seus cuidados. Sem que percebesse, uma lágrima escorreu pela sua face e suas últimas forças pareceram encontrar seu fim. A xícara de chá espatifou-se no chão e o seu corpo caiu de joelhos, logo vindo a desabar. Na janela embaçada à sua frente a imagem disforme de uma criança...cabelos encaracolados...sem orelhas, sem olhos, sem nariz e sem boca. Mas mesmo assim podia se ouvir a sua risada maquiavélica e, então, suas mãozinhas começaram a bater sem parar no vidro enquanto um sangue escorria pelo canto da boca de Allegra.
A pequena Manu estava assustada em seu quarto. Encolhida na sua cama ela abraçou suas pernas enquanto, com sua respiração ofegante e seus olhos arregalados, encarava a porta fechada. Ouviu passos leves se aproximando e parando do outro lado. Viu a maçaneta girar lentamente e a porta rangir abrindo calmamente. Seu grito apavorado podia ser escutado por toda a colina e além. Uma menina de longos cabelos encaracolados apareceu diante dela na porta. Ela não tinha rosto, mas ouvia-se sua risada diabólica enquanto ela se aproximava da cama. Manu estava paralisada. Aquela menina se apossou de um porta retrato com a foto de Manu e sua mãe, quebrou-o e segurou um pedaço de vidro entre seus dedos. Subiu na cama e começou a atingir Manu sem parar. Sem dó e nem piedade, enquanto o sangue jorrava na cama, nas roupas e na parede.
Kevin chorava sem parar sentado ao lado do vaso sanitário, abraçado em suas pernas no banheiro do segundo andar. Carregava, pendurado em seu pescoço, um cordão com uma pequena foto sua, junto de seus pais. Agarrou-se a ela e a beijou como se pedindo proteção aos pais que já não estavam mais entre os vivos. Ouviu um estrondo no corredor e arregalou os olhos. Na janelinha no alto viu um relâmpago cortar o céu e um trovão soar sem parar por longos segundos. A chuva havia aumentado nas últimas horas. Ele só queria saber onde estavam Allegra e as demais crianças, mas não criava coragem para se levantar dali e procurar. Não tinha forças. Não conseguia se locomover.
De repente ouviu o chuveiro ser ligado. Espantou-se, pois estava sozinho naquele lugar. A porta do box então se abriu e um menino negro, de cabelo raspado e sem rosto, apareceu...ficou parado de frente para Kevin, que estava petrificado e, como um raio se aproximou. Se agachou e segurou Kevin pelos cabelos. Levantou-o e empurrou sua cabeça dentro do vaso sanitário segurando-a enquanto ele se debatia. A luz começou a piscar sem parar e as risadas do menino negro sem rosto ecoavam pelo local.
Já passavam das 17h30m e a chuva insistia em cair. Magali estacionou seu Fiat 147 em frente à construção antiga. Saiu debaixo de toda aquela água e puxou sua mala com dificuldade até a varanda, em frente a porta. Estranhou o silêncio perturbador do lugar e desconfiou quando viu a velha cadeira de balanço de Allegra começar a oscilar sozinha.
Através da pequena janela viu uma luz ser acesa e passos apressados correrem até a porta. Alicia abriu-a e correu para os braços da bisavó. Magali sentiu o medo no olhar e no toque da pequena. Confortou-a por alguns segundos enquanto olhava o local tentando decifrar o que estava acontecendo.
"O que está acontecendo aqui?" , disse Magali como se perguntando para si mesma.
Alicia olhou para cima encarando a sua bisa.
"A culpa é minha", lhe respondeu com uma voz chorosa.
Magali abraçou novamente a bisneta.
"Não se culpe, minha querida".
Foi então que Magali sentiu o perigo real, o verdadeiro mal que impregnava aquele lugar. A luz se apagou de repente e um grito ensurdecedor se ouviu no segundo andar. "É o Phelipe, ele está em perigo!", disse Alicia puxando a bisavó pela mão. "Cadê Allegra e as outras crianças?", perguntou Magali. O olhar da pequena Alicia se perdeu fitando o chão. "Eles se foram.", respondeu a menina chorando.
Subiram as escadas depressa e quando chegaram no andar superior um cheiro de podre exalava pelo ar. Tentaram à todo custo abrir a porta do quarto de Phelipe, sem sucesso. Ele gritava desesperado do lado de dentro pedindo por socorro.
Repentinamente tudo silenciou. Longos minutos assim. E o cheiro. Ahhh, o cheiro de podre se dissipou.
A porta do quarto se abriu sozinha e a claridade de uma luz forte foi de encontro aos olhos de Alicia e de Magali, que colocaram as mãos no rosto protegendo-se. Quando a luz, aos poucos, foi enfraquecendo, as duas tiraram as mãos da face e se apavoraram com que estava diante de seus olhos. Um menino raquítico e de cabelos encaracolados, sem rosto, estava ajoelhado segurando uma faca ensanguentada. Levantou a cabeça na direção da porta e gargalhou sem parar. Diante dele estava o corpo de Phelipe estirado ao chão. No lugar dos seus olhos havia dois grandes buracos de onde ainda escorria um sangue grosso e escuro. "Nãaaaaaaoooo!", gritou Alicia sendo amparada por Magali.
Magali se impôs diante daquela criança sem rosto. Ordenou que a pequena Alicia ficasse para trás e caminhou na direção do menino raquítico que ainda gargalhava. Ele também se impôs. Se levantou segurando a faca em sua mão e a posicionou para o alto, pronto para atacar se necessário. Magali proferia palavras indecifráveis enquanto se aproximava, mas foi surpreendida pelos vultos de outras crianças sem rostos que se posicionavam ao lado daquele garoto raquítico de cabelos encaracolados. Sentiu que não seria páreo para eles. Acanhou-se. Tentou retornar e evitar aquele confronto, mas os vultos se tornaram reais e a rodearam. Magali, com lágrimas nos olhos, vendo que não haveria volta, pediu para que Alicia fugisse dali. "Corra!", disse ela chorando copiosamente.
As gargalhadas das crianças se tornavam cada vez mais altas e assustadoras. Elas, passo à passo, se aproximavam de Magali enquanto que Alicia dava pequenos passos de costas para fora do quarto.
"1, 2, 3...bate na parede! 1, 2, 3...bate na parede! 1, 2, 3...bate na parede!", repetiam as crianças uma à uma até chegarem bem próximas de Magali. Todas estenderam suas pequenas mãos tocando a velha senhora, que olhou para o alto e se deixou cair de joelhos sendo consumida por aquelas crianças sem rostos...
Alicia, chorando, se virou e saiu correndo. Desceu as escadas, errou o passo e caiu rolando. Levantou-se já no andar inferior sentindo as dores da pancada e caminhou se arrastando até a porta abrindo-a. Lá fora a chuva caía intensamente e Alicia não teve escolha a não ser se arrastar para além do internato, debaixo de muita água, sem saber para onde ir, sem a ajuda de ninguém...sem um caminho certo para seguir.
Quando já se encontrava na estrada de terra batida além da colina, Alicia criou coragem e olhou para o internato. O mesmo carregava uma áurea jamais vista. Luzes brancas saíam pelas janelas clareando o céu escuro e nas mesmas podia se ver as crianças sem rostos, uma em cada janela, como se mostrando que naquele lugar elas que mandavam e que ninguém jamais poderia interferir.
"As forças malignas existem até agora. O conto de fadas é real. Deus existe. O Diabo existe. Nosso caminho é saber qual escolher"
Um carro preto cruzou a estrada de terra batida mais adiante e parou ao ver a pobre menina sozinha. Um homem alto, de andar arcado e usando cartola saiu do veículo e, sorridente, chamou Alicia fazendo sinal com a mão. Sem escolha, a pequena correu até o carro e ele deu lado para ela entrar no banco de trás. Entrou no veículo e deu a partida. Olhou pelo retrovisor a pequena Alicia ainda atordoada com os acontecimentos. Sorriu. "Relaxa, menina. Está à salvo agora. Quer ouvir uma música?", perguntou ele já ligando o rádio.
"Ele pode até não ter olhos
Mas sabe onde você se esconde
Ele parece estar feliz
Em ver o medo que te consome
Homenzinho torto
Bela cartola você tem
Cartola você tem
Homenzinho torto
Com seu andar de morto
Monstro que vem do além
Um, dois não olhe pra trás
Três, quatro correr não adianta mais
Cinco, seis chegou a sua vez
Sete, oito, nove, dez ele vai puxar seus pés
Um, dois não olhe pra trás
Três, quatro correr não adianta mais
Cinco, seis chegou a sua vez
Sete, oito, nove, dez ele vai puxar seus pés
Lá, lá, lá, lá
Ele senta em uma cadeira
Ao lado da sua cama
Ele sorri vendo você se debatendo enquanto
Corta sua garganta"
FIM
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