Conto - A Mais Absurda e Padronizada História de Terror Clichê

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A MAIS ABSURDA E PADRONIZADA HISTÓRIA DE TERROR CLICHÊ


Conto de
Eduardo Canesin




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Era noite de Halloween. Não que no Brasil se celebrasse tal data, embora as empresas estivessem introduzindo o costume – afinal, seria bom para a economia. A massificação e padronização de costumes sempre é boa para os negócios.

O cenário não poderia ser mais clichê: dentro de uma delegacia, com o policial fazendo plantão e preenchendo os documentos de sempre. Eis que chega seu colega.

Alex, recebemos um chamado de uma criança que disse que está sendo perseguida por fantasmas e que a babá foi possuída por um demônio.

E eu com isso? Você já viu minha esposa… até hoje não sei se ela está possuída ou se é o próprio demônio.

Pois é, também me pergunto isso. O problema é que recebemos a ligação dessa criança, não dos seus filhos. Vamos ter de verificar o caso dela, não o seu.

Temos de verificar o caso dela? Tá na cara que é um trote.

Também acho, mas são ordens do chefe. Desde a Páscoa, quando não fomos investigar a história do coelho da Páscoa assediador, o DP está na mira dos jornais. Se a gente não for lá e realmente tiver algum problema, estamos ferrados.

Puxa, mas são coisas diferentes. O coelho ter passado a cenoura em um pai de família respeitável é uma coisa, não tínhamos como prever que ele faria isso… agora, se formos atender cada chamado bizarro, não teremos tempo de comer rosquinhas ou preencher papéis.

Eu te entendo, mas não tem como evitar. Se for trote, podemos dar uma coronhada no menino e prendê-lo em alguma cela, caso ele não seja de classe média. O problema é se não aparecermos lá e realmente tiver alguma coisa errada. Se algum assassino aparecer e o matar, a culpa cairá na gente, não no assassino.

Tá, mas ele não falou de fantasmas e possessão? E se tivesse um caso desses, o que faríamos?

Bom, podemos tentar dar coronhadas. Se não der certo, vamos embora e preenchemos um relatório falando que o caso não se aplica a nossa alçada. É o que temos para hoje, afinal, não somos caçadores de fantasmas.

Tem razão. Vamos logo nessa desgraça.

Só tem um problema… eu tenho coisas para fazer aqui, você terá de ir sozinho. Mas tudo bem, já que provavelmente é só um trote mesmo. Qualquer coisa, é só me chamar pelo rádio.

Nós somos parceiros de patrulha. Não podemos sair sozinhos por aí.

É feriado, ninguém vai reparar. Quebra esse galho, Alex.

Hoje não é feriado.

Só quebra o galho. Na próxima Páscoa, caso algum coelho moleste algum homem de família, pode deixar que eu vou sozinho, pode ser?

Não vejo que saída eu tenho…

E assim, a contragosto, Alex prendeu o cinto e saiu do escritório. Era um policial experiente, já estava na corporação há mais de dez anos. Sabia que tinha de atender aos chamados quando estava de plantão. Aquela cidade era bizarra, sempre tinha coisas estapafúrdias acontecendo.

Quando ele entrou para a polícia, apenas queria realizar seu sonho, que era matar pessoas e abusar da autoridade. Raras vezes pôde fazer isso. Na maior parte do tempo, tinha de controlar o trânsito, impedir tumultos e preencher relatórios.

Acabou amolecendo e engordando. Agora, só tinha vontade de fazer serviço interno e comer rosquinhas. Quando saía para algum patrulhamento, comia coxinhas e pastéis, mas isso não fazia com que se sentisse bem em seu trabalho.

Nem mesmo agora, quando tinha a possibilidade de dar coronhadas em alguma criança da periferia, sentia-se bem, pois este não era um grande consolo. Ainda assim, certamente seria melhor do que ter de enfrentar algum bandido: eles são sempre perigosos, malvados e feios, Alex não tinha mais saco para isso. Se pudesse, preferiria prender padres ou pastores – ou qualquer pessoa mais pacífica, que não reagisse a suas ações. Mas nunca o deixavam fazer o que queria, é claro.

O GPS do carro indicou o endereço do chamado. Deu partida e se dirigiu ao local. Não era um bairro de periferia, o que reduzia enormemente suas chances de dar coronhadas. Paciência, seria apenas mais uma noite horrível, com mais alguns trotes recebidos. O trote era comum naquele DP. Coisas da vida.

O dedicado policial chegou ao endereço e desceu do veículo. A casa era grande e velha – o tipo de lugar que fantasmas habitariam. Normalmente, fantasmas e espíritos são aristocráticos: moram em casas grandes e antigas, nunca em conjuntos habitacionais ou apartamentos baratos.

Talvez o motivo disso seja o medo. As histórias correm velozmente no reino sobrenatural. Alguns anos atrás, um zumbi invadiu um conjunto habitacional. Ele mordeu uma pessoa e essa pessoa, irritada, mordeu o zumbi. Os parentes da vítima fizeram a mesma coisa e, em pouco tempo, o morto-vivo estava inteiramente morto.

A polícia nunca soube desse caso e não fez perguntas quando um corpo parcialmente devorado foi encontrado no rio da cidade. O guarda de plantão apenas empurrou o cadáver mais um pouco, para que ultrapassasse o limite do município. Depois disso, o problema era de outro DP.

Foi uma atitude acertada, que recebeu vários elogios do coronel, pois significava redução da taxa de homicídios do município. Romualdo, o policial que empurrou o corpo, foi promovido e, em pouco tempo, estava cuidando de casos na corregedoria do órgão. Naquele ano, as violações policiais foram mínimas, apesar do aumento do número de óbitos provocados por agentes. O governador colheu os louros dessa diminuição de violações.

De toda forma, talvez o que aconteceu com o zumbi tenha se espalhado pelos canais de fofocas do reino sobrenatural. Provavelmente por isso os espíritos têm predileção por assombrar a classe média alta. Não podemos criticar sua lógica, evidentemente.

Alex bateu à porta da casa e, após longa espera de quinze segundos, quando estava se preparando para ir embora e declarar que o caso era um trote, foi atendido por uma criança com cerca de dez anos.

Socorro, seu policial, o diabo quer matar minha irmã.

Duvido que minha esposa tenha algo contra ela, garoto. O que está acontecendo aí?

Minha família se mudou para cá faz algumas semanas… desde então, coisas estranhas têm acontecido: o Corinthians ganhou um campeonato, a televisão liga de noite sozinha, no quarto do meu irmão mais velho, sempre em algum canal pornográfico… a mesma coisa acontece com a internet dele, aliás… meu pai recebe, de noite, vários telefonemas estranhos de uma mulher; minha mãe está sempre passando mal e chamando o médico durante o dia, para cuidar dela. E há vozes que ficam gritando o tempo todo que é para eu matar minha família e fugir para a Venezuela.

Não acredito! Mandar alguém para a Venezuela só pode ser coisa do Satã… realmente tem algo errado aí.

Meus pais e meu irmão mais velho saíram hoje, para um evento. Eu e minha irmã mais nova ficamos aqui em casa, com nossa babá. A voz que sempre fica falando comigo disse que, se eu não matasse ninguém, ela mataria.

E o que você fez?

Eu apenas ignorei, assim como ignoro o que minha mãe fala para mim.

Essa é uma atitude correta, sempre fiz isso e estou vivo até hoje. Como acabou a história?

Eu fui dormir e, em poucos minutos, minha babá apareceu no quarto. Ela estava com a cara e a voz esquisita, e começou a andar no teto.

Odeio quando acontece isso. Uma vez fui prender um usuário de crack que começou a fazer a mesma coisa.

Como o senhor resolveu isso?

Descarreguei o pente nele e disse que foi legítima defesa.

Ah.

E o que aconteceu com sua babá?

Ela disse que ia matar minha irmã e devorar o coração dela. Eu saí correndo, fechei a porta do quarto e liguei para a polícia. Minha irmã está no quarto dela, dormindo. Ela só tem quatro anos, não sabe o que está acontecendo.

Entendo. Então você quer que eu acredite nessa história que você está me contando, sem nenhuma prova ou indício de que seja verdadeira, é isso?

É.

Tá bom. Vamos entrar logo, para eu ver a babá. Caso algo esteja errado, pode deixar que eu resolvo. Mas se for algum tipo de brincadeira de um pirralho mimado, fique sabendo que você está muito encrencado, garoto. Ninguém brinca com a lei e a ordem e se safa.

Entendi. Só preciso avisar que minha babá, quando subiu no teto, tirou a roupa… talvez quando o senhor chegar lá, a veja pelada.

Vamos entrar logo, moloque, apresse-se.

Ao entrar na residência, Alex notou que algo estava errado: havia uma marca de copo na mesinha de centro. Que pessoa de classe média alta deixaria algo assim acontecer? Empregadas eram demitidas diariamente por muito menos… Alex percebeu que estava pisando em um terreno desconhecido, em que qualquer coisa poderia acontecer.

Leve-me até onde está a babá pelada, rápido!

Por aqui, seu guarda.

Subiram a escada e começaram a atravessar um longo e sombrio corredor. O local era um clichê absoluto para filmes de terror. Como alguém poderia morar num cenário daqueles? O frio percorria a espinha de Alex, que apertou o coldre com força.

Definitivamente não era assim que esperava passar seu turno: aquilo era absurdo, não ganhava para fazer essas coisas. Por que não chamavam um padre? Eles eram mais bem pagos e tinham o dízimo, portanto poderiam lidar com um ou outro fantasma de vez em quando.

O policial lembrou da babá sem roupa, suspirou fundo e seguiu em frente.

É aqui, seu policial. Ela tá nesse quarto aqui, que eu tranquei. O senhor quer a chave?

É claro que sim. Me dê aqui e vamos acabar logo com isso. Eu entro e você fica do lado de fora. Deixe-me averiguar o que está acontecendo.

Girou a chave na fechadura e empurrou a maçaneta. Em poucos segundos, estava adentrando um quarto escuro. As luzes não acendiam (provavelmente estavam queimadas). Maldição! Nada de nudez naquela noite, aparentemente…

Tem alguém aí?

Teeeem – disse uma voz rouca e grossa, quase gutural.

Garoto, quantos anos tem sua babá? Ela é idosa ou algo do tipo? - o policial gritou para o menino, que estava do lado de fora do quarto. Alex se arrependeu de ter fechado a porta.

Não, senhor.

Ela está rouca?

Não, senhor.

Ela é um travesti?

Não que eu saiba, senhor.

Então fodeu.

Alex, temeroso, deu um passo ao lado e tomou a palavra novamente:

Quem é você?

Eu sou Abdaeeeel – disse a voz no escuro.

Garoto, qual é o nome da sua babá?

Letícia, senhor.

Puta que pariu! Me fodi!

Nããããão tenha medo, Alex, eu te conheço e você me pertence.

Ai, caralho. Ai, caralho, Ai, caralho.

O policial correu desesperadamente atá a porta, mas, antes de chegar ao destino, esbarrou em um corpo. A babá fora rápida e já estava interceptando a saída.

Aaaaaaaaaaahhhhhhhh! - gritou, de forma máscula, o homem da lei.

Nããããão fique assim, Alex. Venha me servir.

Sai, vadia! Me deixa em paz!

O policial tentava, a todo custo, acender a luz – como se isso pudesse ajudá-lo –, mas não teve sucesso.

Voooocêêêê quer me ver, Alex? Deixeeeee que euuuu ajudo. Que se faça a luzzzz!

A lâmpada, que parecia estar queimada, acendeu-se. Alex viu, então, o rosto da babá, desfigurado. Os olhos giravam e a saliva escorria pela boca.

Puta que pariu! Aaaaahhhhhh!

O policial sacou a arma e atirou várias vezes. A babá continuou em pé por algum tempo, mas, após as balas se acabarem e receber diversas coronhadas e cadeiradas, caiu. Não se mexia. Um vento forte atravessou o recinto (que estava com as janelas fechadas) e um grito foi ouvido no lado de fora.

Alex, atônito, abriu a porta e foi em direção aos gritos. A menina de quatro anos gritava no quarto dela. Ao chegar ao local, viu que seu urso de pelúcia estava subindo na cama, girando a cabeça e falando com voz grossa.

Filho da putaaaaaa! - O policial correu e deu um pontapé no brinquedo, que acertou a parede e caiu.

Ooooora, Aleeex. Não adianta fazer issooooo. Eu vou matar essas crianças hoje, não há naaaada que você possaaaa fazer para evitaaar. Eu vou segui-los e, se for preciso, mato vocêêê também.

O policial estava desesperado. Não importava o que acontecesse, certamente não ganharia um aumento de salário. Isso era desmotivador. Para piorar, não sabia o que fazer. Tentou lembrar de tudo que já foi tentado em filmes de terror e nada daquilo parecia muito eficaz na vida real de um conto.

Não sabia rezar, não tinha como estabelecer pactos com o sobrenatural, não era o escolhido e não tinha material específico para derrotar fantasmas. O que poderia ser feito?

Após alguns segundos de desespero, decidiu arriscar-se em algo ousado. Não tinha certeza de que daria certo, mas talvez fosse a única alternativa. Agarrou a menina e saiu correndo do quarto. No meio do caminho, puxou o menino pelo braço e os levou correndo. Desceu a escada, enquanto o urso de pelúcia os perseguia com todo o terror que seus quinze centímetros causavam.

O policial saiu da propriedade e entrou no carro, colocando as crianças no banco de trás. Ligou a sirene a partiu em velocidade. O urso de pelúcia, equipado com o triciclo elétrico de uma das bonecas da menina, seguia atrás. O que perdia em potência, ganhava com manobras radicais e desvios alucinados no trânsito.

A perseguição era implacável e assustadora – a despeito da bizarria da cena. Certamente era bizarra, mas todas as histórias de terror, com suas tramas padronizadas, também não o são?

O que é, aliás, mais bizarro: um urso de pelúcia num triciclo elétrico ou um assassino com motosserra que mata as pessoas por mero prazer? Isso para não mencionar tomates assassinos e fantasmas que ficam aparecendo em filmagens (na certa querendo a selfie perfeita)… a lista de elementos estapafúrdios é longa, bem como de clichês.

Não que Alex estivesse preocupado com clichês: naquele momento, tudo que queria era sobreviver. Tinha uma minúscula chance de isso dar certo. Se ele soubesse que estava em uma obra de ficção e que era o protagonista, talvez ficasse mais tranquilo, já que isso provavelmente significaria um final feliz. Como ele não sabia, apenas ficava mais e mais apreensivo.

Após correr mais alguns quilômetros, finalmente chegou ao seu destino. É surpreendente que um triciclo de brinquedo tenha perseguido um carro em velocidade máxima por vários quilômetros, mas nem tudo faz sentido em uma história de terror.

Se podemos acreditar em seres do além, por que não acreditar na qualidade e potência de alguns brinquedos? Certamente é algo tão fantasioso quanto espíritos, mas estamos diante de uma obra ficcional: o insulto à inteligência sempre fez parte do terror.

De toda forma, o fato é que Alex chegou a seu destino: a comunidade (eufemismo para favela) do município. Talvez o fantasma não os perseguisse lá. Uma coisa era encarar um agente da lei e da ordem e algumas crianças. Outra, bem diferente, era entrar no território de uma facção criminosa. Será que aquele espírito teria tal ousadia?

Não teve.

O urso não seguiu em frente, talvez por medo da facção criminosa ou dos habitantes da comunidade (já que fantasmas são aristocráticos, conforme a tola premissa desse conto). Ou talvez a bateria do triciclo apenas tivesse acabado, no fim das contas. O fato é que, em poucos segundos, um carro passou por cima daquele diminuto brinquedo possuído. Ouviu-se um grito e uma lufada de vento muito forte se espalhou.

Poucos minutos depois, aquele carro capotaria trinta e sete vezes e cairia em um riacho. Como o motorista estava bêbado, não tinha licença para dirigir e roubara um veículo sem freio, ninguém tentaria fazer elucubrações sobre o ocorrido: apenas limpariam o riacho e colocariam os dados do acidente nas estatísticas da região.

As crianças não foram mais incomodadas pelo espírito, talvez por terem mudado de casa poucos dias depois. A mudança, no entanto, não se deu por questões sobrenaturais: a mãe fugiu da cidade com o médico, o irmão mais velho foi preso por divulgar pornografia infantil e o pai teve de sair da região, levando os filhos, para escapar das fofocas e risos. Foi viver com a mulher que lhe fazia constantes ligações misteriosas. Coisas da vida. Ah, e o Corinthians nunca mais ganhou um campeonato.

O caso da babá morta, por sua vez, era uma ponta solta volumosa que precisava ser fechada. Tal ocorrência foi para a corregedoria de polícia do município e foi avaliada por Romualdo. Este, após muito investigar, concluiu que a jovem morrera de overdose.

Quando o questionaram sobre os tiros e o calibre da arma que fez o disparo, apenas acrescentou que ela tentara se matar antes de morrer por overdose. Para isso, roubara a arma de um policial. Ninguém questionou essas conclusões nem onde foi parar a arma e Romualdo, então, foi promovido por conta de sua sagacidade.

Alex, por sua vez, não disse nada a ninguém. As pessoas não acreditariam em sua versão. Nem ele acreditava, para falar a verdade. No fim, achou melhor dizer que levara as crianças para a comunidade para que elas vissem a vida dos pobres e parassem de dar trotes na polícia. Ninguém entendeu a relação entre o trote e a vida das pessoas pobres, mas não questionaram. Fazer perguntas poderia gerar inquéritos, o que daria mais trabalho para todo mundo.

As crianças, apesar de falarem sobre o evento, não foram ouvidas. Eram meras crianças de classe média alta querendo chamar a atenção. Não mereciam ser escutadas.

Geraldo, o parceiro de Alex que apareceu no começo do conto, teve de lidar, sozinho, com o coelho assediador na Páscoa seguinte. O coelho, mais ousado pela experiência de impunidade do ano anterior, tentou se aproveitar de um cara na saída de uma academia. Acabou baleado.

Talvez seja importante frisar, à guisa de conclusão, que Alex não pertencia a Abdael, mas continuou casado com sua própria esposa, Janete. Na mente dele, não havia muita diferença. Não passava de mais uma história de terror clichê.

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