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Os corpos de Adão e sua esposa foram encontrados pela polícia após alguns vizinhos reportarem o mau cheiro que vinha de seu apartamento. Estavam em estado avançado de decomposição e o imóvel não apresentava nenhum sinal de que fora invadido. Tudo indicava que cometeram suicídio.
Não encontraram ferimentos ou lacerações, por isso os peritos concluíram que a causa mortis era envenenamento. Pelas disposições dos corpos quando foram encontrados – a mulher com a cabeça apoiada na barriga do marido, o qual estava deitado em um travesseiro –, o relatório final foi taxativo: a morte fora autoinfligida, pois não havia indícios da angústia de sentir os efeitos de algum veneno. Apesar de nenhum legista ou toxicologista identificar qual fora a substância ingerida, nada abalou a conclusão do veredicto. O caso estava fechado.
De fato a morte fora autoinfligida. Os eternos amantes estavam deitados de modo cômodo, pois foi assim que passaram seus últimos momentos, antes do falecimento: comodamente. Não sentiram dor ou angústias – muito pelo contrário. Para que entendamos o que houve, talvez seja necessário saber sobre o último dia do casal.
Adão sofria de depressão (antes chamada de melancolia) há já vários anos. Não suportava o mundo em que vivia e no que este mundo se tornara. Tudo era tão triste e vazio… perdera os filhos, os quais não se importavam com os pais, tampouco com os próprios laços consanguíneos. Adão e sua esposa ficaram sozinhos, só tinham um ao outro. Ao menos ela lidava um pouco melhor com isso.
Ele tentara seguir em frente na vida pelo máximo que pôde. Tentou serviços braçais, tentou ser músico, tentou ser gari, tentou ser eletricista. Apenas não tentou algum trabalho corporativo, pois sabia que jamais teria estômago para isso. Na verdade, sequer tinha idade para essas coisas.
Nos últimos anos, quando seu sofrimento atingiu o mais alto patamar, simplesmente desistiu da humanidade. Trancou-se em casa e não saía mais do quarto. Sua esposa provia o sustento da pequena família e pagava as contas. No restante do tempo, tentava animar o marido – geralmente sem muito sucesso.
Ela também via o absurdo que tudo se tornara nos últimos tempos, mas não era tão sensível e tentava se convencer de que, no fim, as coisas poderiam melhorar. Talvez só faltasse conhecimento para as pessoas. Ela sempre foi uma fervorosa defensora do saber – enquanto seu marido, mais conformista, sempre pendeu ao obscurantismo.
Havia uma série de pequenos avanços no mundo que tornavam a vida do esposo recluso um pouco menos fastiosa: televisão, computadores, filmes, músicas e livros os mais variados. Houve tempos em que as coisas não eram assim.
Pelo menos a esposa sabia que o marido não ficaria apenas estirado na cama – embora ficasse assim a maior parte do tempo – enquanto ela saía para trabalhar: ele poderia ler ou assistir alguma coisa. Talvez isso o distraísse e, quiçá, desse-lhe nova esperança para encarar a humanidade.
Adão até tentara produzir as próprias histórias, mas no geral eram muito soturnas, só mostravam a miséria do mundo. Ele apenas colocava no papel aquilo que preenchia sua mente, aquilo que observava e que percebia como uma tendência inevitável da vida. Ele não via uma saída. Suas histórias jamais saíram de sua casa – ele não tinha para quê se preocupar com publicações ou qualquer coisa do tipo, pois não valeria a pena. Quem leria o que escreveu, em uma sociedade que passou a se comunicar apenas por grunhidos?
Por fim, parou de escrever. Não tinha motivo para se dar a tanto esforço. Bastava pensar nas histórias, o que poderia fazer enquanto estava deitado na cama, seu jeito preferido de passar os dias e as noites.
Apesar de, na época que saía de casa, jamais ter tido um trabalho qualificado, bem como nenhum tipo de educação formal, Adão tinha a sensibilidade de um poeta. Ele conhecia o mundo o suficiente para saber que não queria viver nele. Por isso, tomou uma decisão.
Essa decisão, em princípio difusa, foi ganhando corpo ao longo dos dias. Graças à internet, uma ferramenta fabulosa cujo valor não era negado por Adão, ele teve contato com alguns endereços eletrônicos e grupos de conversas.
Eram grupos pequenos e sites desconhecidos, os quais falavam mais de lendas do que de verdades. Ainda assim, algo despertou a atenção de Adão, que era sagaz e percebeu um certo padrão onde as características pareciam por demais díspares.
Os relatos eram vagos. Falavam sobre mortes misteriosas e – às vezes – sobrenaturais. Mortes que aconteciam ao redor do globo, com pessoas sem nenhuma ligação, mas que envolviam supostos envenenamentos. Os efeitos eram os mais diversos, tendo como única semelhança o fato de as substâncias jamais serem identificadas pelos legistas.
Tudo não passava de teoria da conspiração, é evidente. Ou será que não? Adão pensou um pouco e uma imagem lhe veio à cabeça. Uma figura de muito tempo atrás, que ele fez questão de exorcizar de sua mente – mas que sempre fazia questão de voltar, para escarnecer de suas escolhas e das consequências que vieram com elas.
Ele não falava sobre isso com a esposa, mas sabia que ela também pensava nessa figura. Talvez não com a mesma dor e o mesmo peso, mas certamente pensava. Talvez o peso fosse até maior, mas ela era mais forte e sabia suportar o sofrimento.
O fato é que a imagem estava clara na cabeça de Adão e ele tinha certeza de que havia uma relação entre ela e os eventos conspiratórios. Tudo era um jogo para aquela figura e, de alguma forma, ele sempre estivera no centro do tabuleiro, cercado e sem saída. Talvez fosse a hora de fazer seu último movimento – o qual era aguardado há muito tempo e já devia ter ocorrido.
Ele não falou disso com sua esposa. Ainda não era hora. Apenas ficou deitado, pensando em como agir. Fez mais algumas pesquisas e percebeu que o movimento derradeiro naquela partida não seria tão difícil assim.
Certa noite, quando a esposa chegou, eles tiveram uma refeição saborosa. Pediram pizza – Adão adorava isso – e algumas sobremesas geladas, sempre tão gostosas. Por fim, assistiram alguns filmes até a hora de dormir. Assim se encerrou a penúltima noite do casal.
No dia seguinte, depois que a esposa de Adão saiu de casa, ele acordou. Tinha coisas a fazer na rua. Fazia anos que não pisava fora de casa, foi uma sensação ruim, difícil de lidar e desagradável.
O dia estava lindo, é verdade, mas Adão só via melancolia a cada passo que dava. O que o mundo se tornara? Apesar de todos os avanços, algo se perdera ao longo de todos aqueles anos. Talvez a amizade primordial tivesse sido esquecida. Talvez fosse isso que faltasse. Mas não importava, não era o momento para elucubrações.
Começou a caminhar. Tirou a camisa, para sentir o sol em sua pele. Estava branco como um vampiro, mas isso não importava. Não ficaria bronzeado nem teria câncer de pele, no fim das contas. Apenas andou mais alguns passos e depois mais outros.
Podia pegar um ônibus, mas não suportava aquilo. A única forma de locomoção que achava apetecível era a caminhada. Tudo o mais era vão. Mesmo a caminhada era vã, pois não adiantava se locomover, já que não há lugar a que pudesse ir para escapar da miséria. Ainda assim, ao menos a caminhada era menos deprimente que outras formas de se deslocar. Para alguém tão melancólico, era algo que não podia ser desprezado.
Adão não se preocupou em fazer mapas ou em pesquisar endereços. Pelo que aventou e suspeitava, isso jamais daria certo nem seria necessário. Aliás, nem precisava mesmo se preocupar com isso, pois provavelmente encontraria o que procurava, não importando o caminho que escolhesse. O tempo e o espaço sempre foram relativos.
O local a que chegou era um beco degradado, o cenário perfeito para um encontro como aquele, depois de tantos e tantos anos. Estava em um beco degradado, para falar com uma figura degradada. Encontrou uma lojinha velha, sem identificação. Era minúscula e vil. Adão sorriu. Sabia que era lá que encontraria o que procurava.
Atravessou a porta e entrou na loja mal iluminada, repleta de ervas e frascos de vidro. Um senhor caquético e com aparência reptiliana limpava os objetos de uma prateleira. Sem se virar para o visitante, começou o diálogo:
– Em quê posso ajudá-lo, meu caro?
– Há quanto tempo…
– Eu o conheço? - Disse o velho, com ar zombeteiro.
– Ambos sabemos que sim, embora você tenha tratado sobretudo com minha mulher.
– Ah, acho que começo a me lembrar. Uma senhora fantástica, se me recordo bem. Perdoe minha memória… ela já não funciona mais como antes.
– Não faz mal. Não vim aqui relembrar o passado.
– Embora houvesse muito a recordar, não é mesmo? Como vai nosso amigo em comum? Tem notícias dele, após tantos e tantos anos?
– Você sabe que não.
– Eu? Mas como eu saberia disso, meu caro?
– Se tem algo que aprendi é que você sabe de quase tudo.
– Quase… mas te entendo. Não perderei tempo perguntando dos seus filhos, então.
– É melhor assim.
– Hehe. Senti sua falta. E de sua esposa. Imagino que nunca me esqueceram, não é mesmo?
– Era impossível que esquecêssemos, depois de tudo pelo que passamos.
– Sim, passaram por muita coisa. Mas sejamos justos, não fui eu a causa de tudo… eu só dei o que queriam, não obriguei ninguém a fazer coisa alguma. E a reação foi meio superdimensionada, não é mesmo?
– Não vim aqui discutir o passado.
– Certamente não.
– Você sabe porque estou aqui?
– Ora, você mesmo disse que eu sei de quase tudo… mas não é preciso de tanto conhecimento para perceber o que você quer. Está na cara, hehehe. Ainda assim, gostaria de ouvir de sua própria boca.
– Eu quero ajuda.
– Para o quê?
– Para acabar com tudo isso.
– Hehehe.
– Você vai me ajudar?
– Por que você vem até mim? Não haveria outras formas de conseguir seu objetivo?
– Você sabe que não. Você sabe que já tentei de muitas outras formas. Várias e várias vezes, sempre sem sucesso.
– E como sua doce esposa se sentiu, ao saber de todas essas tentativas malfadadas?
– …
– Ora, não me diga que você não contou a ela!
– Você vai me ajudar ou não?
– Mas é claro que sim. Ao contrário do que dizem por aí, sou muito misericordioso. Sempre dou aquilo que me pedem.
– Mas a quê custo? E com quais consequências?
– Nunca cobro mais do que podem pagar. E as consequências não são causadas por mim. As consequências são causadas pelos próprios indivíduos. Ou por nosso amigo em comum, sempre tão ciumento…
– Não vim aqui para falar sobre isso.
– Tenho certeza que não. Mas me diga: você abandonaria sua admirável esposa sozinha, nesse mundo tão cruel?
– …
– Hmmm… vejo que agora começo a te entender de verdade, hehehe. Por que você acha que ela te seguiria?
– Eu a conheço.
– Não é bom ter o conhecimento, no fim das contas? Hehehe.
– Você vai, ou não, me ajudar?
– Já falei que sim. Tenho justamente aquilo que você procura. Para ser sincero, sempre achei que você me procuraria antes. Demorou muito, mas ainda estava te esperando.
– Como isso funciona?
– É uma erva simples. Basta misturá-la com alguma comida e ingeri-la. Não tem segredo.
– Qual é a sensação?
– Hehehe. Preocupado com isso, meu caro? Fique tranquilo. Vocês não sentirão nada. Mentira: sentirão um prazer que há muito não sentiam. Vocês visitarão, em sonhos despertos, o mundo que perderam. Será prazeroso, onírico, único. Depois disso, aos poucos, vão adormecendo e os sonhos ganharão mais intensidade. Nesse momento, o corpo desligará. É só isso que posso oferecer. O que acontece após esse momento não é minha responsabilidade.
– A questão das consequências, não é mesmo?
– Hehehe. Senti tanto a sua falta, Adão.
– Por que apenas isso pode acabar com o sofrimento?
– Posso ser o pai da Filosofia, mas não sou dono das respostas. Você teria de perguntar ao nosso amigo, mas não sei se irão encontrá-lo.
– Encontraremos alguém?
– Ei, Adão, pare com isso. Você sabe que não posso te dar todas as respostas. Te dei o que você queria, agora é com você.
– E quanto isso custa?
– Nada que você não possa pagar.
– Entendo. Então eu posso levar esse frasco?
– Claro que pode. Provavelmente você não tem dinheiro algum aí com você. Por conta disso, não cobrarei nada. Cortesia para um velho amigo. Qualquer outro preço que tiver de ser pago, podemos acertar em outro momento. Ou não, hehehe.
Adão colocou o frasco em seu bolso e saiu da velha loja que foi tão fácil encontrar. Imaginava que muitos outros tiveram a mesma facilidade, em outros lugares, outros tempos. Cada um com um desejo que só aquela estranha figura poderia satisfazer. Ninguém nunca parava para pensar nas consequências. Tampouco Adão.
Ele caminhou de volta para casa. Chegou, tomou banho, assistiu um pouco de televisão e tirou um cochilo. Mais tarde, sua esposa voltou para casa, após mais um dia cansativo no trabalho.
Adão contou-lhe sobre como passara seu dia, suas escolhas e decisões. Mostrou o frasco para a esposa e a abraçou. Ela deixou algumas lágrimas escorrerem, beijou o marido e aquiesceu. No fim, sabia que aquela era a única saída. Ela era forte, mas estava tão cansada quanto ele de tudo aquilo. Já viram bastante, fizeram bastante e nada mudou. Na verdade, o mundo apenas piorava. Era degradante testemunhar tudo aquilo, talvez realmente fosse a hora de fechar as cortinas e encerrar o ato.
Pediram comida chinesa e mais algumas sobremesas saborosas. Comeram como reis, com a estranha erva misturada em um pote de sorvete. Após isso, conversaram um pouco, riram e se abraçaram. Eva deitou na barriga de Adão e passaram seus últimos momentos em um estado de espírito que há muito não desfrutavam. Estavam em paz.
Algumas semanas depois, a polícia arrombou o apartamento e constatou o óbito. Apesar do avançado estado de decomposição, os corpos esboçavam sorrisos.
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