O Pio da Coruja
de Celso Lopes
O vulto veloz da
ave cortou a noite à minha frente. UHUHUHUHUUUU... Não posso jurar, mas por
instantes, além daquele pio lúgubre, a Coruja parecia deitar também os seus
olhos grandes e penetrantes sobre a minha desabalada fuga naquela estrada
escura. Assim, mais de uma
vez, a ave ziguezagueou o meu caminho, acentuando com o seu pio, as nuances de uma sonoridade
estranha e acusativa, como se me intimidasse de dedo em riste, e gritando e
invadindo a minha caminhada no breu da noite: EU VI...EU VI.... EU VI... essa
sonoridade ia me dando mostras de que a ave acompanharia o meu vulto onde quer
que eu fosse, onde quer que eu andasse.
Por diversas vezes, à custa de um certo
arrependimento, enxuguei com a manga da camisa, o suor frio que escorria do meu
rosto naquela acentuada trilha, que, a bem dizer, não deixava ver um palmo à frente do nariz. Uma
noite sombria que me acompanhava desde que saí da casa. Na estrada, por onde eu
me embrenhara, várias vezes, retive o animal com as rédeas, estancando-o
bruscamente, obrigando-o a me obedecer diante dos desafios da trilha esburacada,
pedregosa e acidentada; ora com subidas íngremes, ora curvas abruptas por entre
o mato. Nesses momentos, eu sentia falta de ouvir algo que quebrasse o silêncio
além do trotar da minha montaria, mas o que martelava em meus ouvidos, mais e
mais, era o agudo pio da ave, como a gritar comigo estridentemente: EU VI... EU
VI...EU VI... o que me fazia, assustado, relembrar e refletir sobre os acontecimentos
que motivaram a minha própria fuga naquela noite.
Nessa hora, pudesse me ver refletido num espelho, sou capaz de afirmar que meu semblante acusaria um susto medonho diante do pio da ave, que mais parecia promover uma provocação inabalável: EU SEI ...EU SEI...EU SEI... A Coruja piava dando um ar ainda mais misterioso à noite... e eu, eu sentia na minha própria pele, o mau presságio rondando a minha caminhada; havendo demônios e maldições nesse mundo, nesse instante, eu sentia a presença de todos eles, de olhos esbugalhados e atentos, traçando o meu infortúnio pela estrada.
O coração, esse, eu sentia bater acelerado, quase a explodir
pela proximidade daquele pio sem fim da ave agourenta: UHUHUHUH... Numa das
minhas paradas, denunciei-me a mim mesmo. Era como se eu sofresse um ressentimento,
uma amargura, um enjoo, um embrulhar do estômago; eu ali, sentia de perto um
rancor pelo que fizera a ela. Remoía-me por demais, por dentro. E cheguei mesmo
a dizer em altos brados, esbaforido: “ – Ave do
inferno...suma, suma daqui!...”.
Sim, eu me arrependia do que fiz, mas nunca, nunca, queria ser vingado por um demônio que me provocava dessa forma, imputando-me a culpa a olhos vistos. A ave, nesse instante, eu pude vê-la sobre um toco da cerca, iluminado apenas pela frágil luz da lua; Imponente sobre aquele mourão, ela, a Coruja, ali, silenciosa, os olhos grandes e fixos sobre os meus gestos no alto da montaria, o que me levava a revidar insistente: “– Xô, Xô... ave maldita.. Xô, Xô...”
A Coruja, ali, confiante e soberana sobre o tronco, punha-se ainda mais
horripilante. Talvez me desafiasse naquela escuridão da noite, em que me vencia,
fácil, fácil, com a sua visão privilegiada. Ela, ali, quase a me dizer, que eu
lhe adivinhasse os pensamentos. Sim, era isso, a ave, ali, parecendo revelar
seus dotes de clarividência, o que me escapava ao domínio; a ave, ali, dentro
da noite com o poder ver e escutar o que nós, os homens, não vemos, não
enxergamos. Além disso, que eu ficasse pasmo vendo o girar do seu pescoço ao redor, o que superava, ainda
mais, a sua capacidade de ter olhos para aquele espaço amplo, sem que precisasse
se mover, por isso, somava, ali, visão e audição à sua habilidade de ave caçadora
noturna. Ou nada disso, talvez seja mesmo, como me contaram, uma velha vestida de preto
com poderes sobrenaturais, camuflada em noites sem lua no corpo de uma ave, uma
coruja. Teriam, assim, poderes divinos da Coruja? Acredito que sim, por
isso, enquanto todos dormem, ela se mantém de olhos arregalados, fixos
e vigilantes, refletindo sobre o que escondemos, e até, enxergando,
profundamente, o que queremos, em nós, os homens, deixar oculto.
A essa altura, a bem da verdade, eu ponderava a mim mesmo que não poderia voltar atrás. No entanto, ainda sem me acostumar com a ideia de que fizera o que tinha de ser feito, deveria seguir em frente! – ponderei.
Junto a uma árvore, bem próxima ao canavial espesso, pude examinar
o par de alianças, exemplarmente escondidas sob as dobras delicadas de um lenço
feminino. Senti-as por entre os dedos longos em vários instantes, até que,
atabalhoado pelo pio da ave e o ruído forte do seu ataque de asas em minha
direção, tentei amparar-lhes a queda com a palma trêmula das mãos. Impossível o
meu gesto. As alianças, ao caírem rodopiaram estrada abaixo, tilintando,
tilintando naquela noite escura, continuadamente, por sobre pedras e rochas, deixando
ver aqui e ali, o rastro de um brilho quase apagado ao rolarem, desamparadas, na
escuridão da estrada. Ainda sem jeito e desorientado, socorreu-me o alívio e a
certeza de que, só mesmo no clarão do dia, é que poderiam, as alianças, serem encontradas.
Enquanto ganhava esse tempo, eu puxava o fio do novelo. Os acontecimentos agora
chegavam fortes e carregados de uma rica e inflexível simbologia. A ave
garantia: EU VI... EU SEI... EU VI.... Impossível não associar a queda das alianças
com o corpo de Alzira rodopiando apavorada pela escada abaixo, despencando cada vez
mais forte, sem qualquer apoio, degrau por degrau, até a soleira daquele piso
de pedra no hall da grande sala da casa. Do alto da escadaria, assisti a tudo, impoluto,
resistente e confiante do meu gesto. Acrescentei a essa imagem, ainda viva na minha mente, as
marcas do sangue que tingira como uma pasta espessa e gosmenta, todo o mármore
branco da escadaria.
Por
alguns momentos,
tudo em mim transformava-se em remorsos. Quem dera, pudesse recomeçar o
relacionamento e buscar pelo perdão de Alzira? Entretanto, noutros instantes,
via-me com um olhar parado naquela noite densa, a insinuar a mim mesmo que
nunca, nunca, haveria de lhe perdoar a traição. E pior, ainda, traição ocorrida
dentro da nossa própria casa. Nada vi, nada vi, mas eis a cisma que tive, transformada
em ciúme cruel e vingativo. Por essa razão, prometi: haveria de livrar-me de
Alzira e do compromisso que acreditava imaculado entre nós, diante do altar. Até
que a morte nos separe!... Assim,
guiado pela desconfiança, sobrepus o ciúme à frente, com o desejo de fazê-la
pagar pela infame traição. Naquela noite, convicto das minhas suspeitas, cheguei
obcecado pelo castigo que lhe empunharia. Sim, agora me dei conta de que ao
avançar para a casa ouvi aquele piado bem próximo à entrada: UHUHUHUHUH....
Subi as escadas e arranquei-a da espreguiçadeira, sabendo que já sentia o meu
ódio pela força que eu lhe impunha. Alzira debateu, refugou, se fez em gritos,
os nervos saltaram-lhe à pele quando pressentiu o horror defronte da alta escadaria.
Pediu clemência, implorou aos Anjos e ao Redentor, mas a obsessão, há muito, havia tomado o meu corpo e explodia
pelas minhas veias. Forcei que Alzira olhasse o destino lá embaixo, tomei-lhe a
aliança, e meus braços cuidaram do resto. Na queda, regada a gritos de dor, ouvi
lá fora o som do bater de asas e do pio da Coruja, que ecoaram, longamente, o
horror estampada na sala. Suportei a dor de
ver Alzira estirada na poça de sangue. Nessa hora, adiantei-me à penteadeira em
busca de um lenço, onde coloquei as duas alianças que selaram uma parte das
nossas vidas. Estava vingado, assenti. Vingado no sentido sufocante da palavra.
Mas se quisesse evitar o castigo que, por certo, logo me alcançaria, a fuga era
mesmo inevitável.
Sob a copa de uma árvore que ladeava a
estrada, apeei do animal e recostei-me ao tronco dessa heroica e única amendoeira
que restara defronte àquele mar de cana. Eu viveria ali, uma ansiosa e demorada
espera até ao amanhecer. Ao clarear do dia, enfim, recolheria as
alianças-testemunhas do meu último gesto. Enlacei as rédeas do cavalo no mourão
da cerca e nesse instante, novamente, a ave cortou a noite à minha frente, acocorando-se
ágil no toco do outro lado da estrada, de onde, incomodada e insistente, emitia
seu estridente grito endereçado a mim: UHUHUHUH... EU VI... EU SEI... EU VI....
Atinei em espantá-la, inutilmente. Voava e voltava. Abria e fechava suas longas
asas. Enfrentava-me indo e vindo. UHUHUHUHUH... Então, como um pavor, desnorteado,
empurrado cada vez maior
pela ave à procura de um gesto que fosse, abri a mochila agregada à sela, e
cometi, sem perdão, um ato silencioso e reservado, que ainda não havia revelado
a ninguém, por conta do meu arrependimento de amor. Na fuga, em mim, vivi algo
que me fez ver a própria existência pela voz tonitruante de Alzira, ao rolar na
escadaria. “Naufragaste, marido insano.
Duvidastes da minha lealdade. Eu, que desfaleço a seus pés, hei de seguir o
que, em um sim mútuo, juramos. E tu, que te agarraste à honra, à desconfiança,
ao terrível ciúme doentio, haverá de seguir só, sozinho pela noite, até o exato
instante em que te medites sobre sua dívida à vida.”
Sim, essas palavras que ouvi de Alzira me conduziram à decisão, e então, com as minhas mãos ágeis e um golpe certeiro, lancei a corda no galho apropriado ao meu peso e altura. O gesto atiçara a ave, levando-a a retomar a ordem viva, vibrante e acusatória: EU VI...EU SEI... EU VI.... As mesmas mãos que, brutalmente, arremessaram Alzira escada abaixo, ali, agora, ainda no escuro daquela noite, transformaram-se em mãos de artífice, tornando esse vos fala, em um exímio carrasco de mim mesmo, executando um nó perfeito, um laço rígido que me sustentaria pelo pescoço, dolorido e quieto, diante do acentuados pios da Coruja, até o alvorecer, quando, inevitavelmente, eu seria encontrado morto; e as alianças-testemunhas descobertas em seu brilho no leito da estrada acidentada.
CAL - Comissão de Autores Literários
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
0 comentários: