Cela Triangular
de Vanderlei Francisco da Silva
– Quero uma cela triangular. – foi o que ele disse, ao saber que seria condenado.
– Isso é pouco provável. – respondeu o advogado.
– Pouco provável? Pouco provável era eu não conseguir minha condenação e ao que me consta isso está mais que garantido.
– Sim, é verdade, mesmo com todas as apelações e recursos, a pena ditada pelo juiz foi de noventa e nove anos em regime fechado.
Ele riu ao ouvir aqueles números.
– Temos leis absurdas meu caro doutor Tenório.
Os caras relutam contra a ideia de prisão perpétua e decretam 99 anos de prisão para um homem de 79 anos. Isso só faz o condenado pensar que a quantidade de legisladores que ele assassinou não foi o suficiente.
– E o que isso tem a ver com uma cela triangular. – questionou o advogado.
– Até mesmo um condenado, pode ser generoso com o estado, doutor. Meus contadores fizeram todos os cálculos; meus médicos fizeram suas projeções e a lógica dos números é fria e subjuga os mais patriotas, os mais justos os mais moralistas e até mesmo e sem sombra de dúvida, os mais honestos.
Ainda sem encontrar relação com o estranho querer do condenado, o defensor ficou esperando em silêncio, por um facho de luz naquele diálogo.
– Não decidi ainda por quanto tempo permanecerei preso, mas, ordenei aos meus contadores que providenciem tudo para que nada me falte, mesmo que eu demore ainda vinte anos para tomar minha decisão. Minha fortuna sobreviverá, além da minha condenação – os números podem provar isso. Tenho tudo ajustado em testamento, de maneira que meu filho Bryan, de 58 anos, meu neto Wiliam que está com 36 anos; e o pequeno Antônio, de 14 anos; essas três gerações, que carregam meu legado, sejam imunizadas contra a falta de dinheiro; e isso fará fazer valer a vontade deles.
– Não entendi onde quer chegar, dom Antônio! – disse o defensor.
– É simples doutor Tenório, bem simples.
Ele retirou de uma das gavetas uma pasta branca com um calhamaço de folhas e entregou ao advogado.
– Leia com atenção! Essa é minha proposta, ou minha solicitação, ou se preferir minha contribuição com o estado. Aí está minha oferta para que o estado pague parte de suas malfadadas negociações – dinheiro limpo doutor, livre de impostos fruto de bons e produtivos anos; duvido que por tanto dinheiro o governador não construa, a título de gratidão minha cela triangular.
– Quer que leve isso ao governador?
– Sim. Pois segundo me consta amanhã estarei preso, não poderei fazer tal mimo.
– Sim senhor! – foi o que respondeu o defensor.
Dez dias depois, na ante sala do Palácio do governo, um dos secretários atendeu o doutor Tenório Guterres Lemos.
– O governador vai recebê-lo doutor Tenório, entre por favor!
Ao entrar no gabinete, para surpresa dele, o governador não estava sozinho.
O pároco da comunidade estava ali numa conversa litúrgica com o governante; e após procedidas as formalidades do encontro o doutor Tenório expressou objetivamente as razões pelas quais estava ali.
De pronto, e como se não soubesse nada sobre o assunto, o governador pendeu para o bom senso, alegando não poder aceitar o dinheiro de um condenado pela justiça; referindo-se ainda a sordidez psicótica dos crimes cometidos.
– Não é prudente aceitar esse dinheiro – argumentou o governador.
– Dinheiro limpo – disse o advogado – todos os procedimentos legais de fisco, e declarações necessárias foram devidamente protocolados.
O religioso, que até então só assistia, decidiu opinar.
– O governo não pode jogar nenhum dinheiro ao vento governador; o povo precisa, o estado está falido. Independente desse dinheiro pertencer a um homem de coração frio e cruel, ninguém pode tirar desse homem o direito de aplicar esse dinheiro para o bem dos mais necessitados – lembre governador, os caminhos de Deus são muitos, nenhum homem pode interferir na vontade de Deus. Essa pode ser a forma com que Deus decidiu curar o coração desse homem e abrandar as necessidades do seu povo.
O governador segurou os documentos por alguns instantes ainda, ponderou, retirou a caneta do bolso e assinou.
Depois, chamou o secretário e ordenou que o fato fosse publicado nos meios oficiais com toda a transparência. E de volta ao assunto os três homens se entenderam, e o governador e o pároco, garantiram ao doutor Tenório:
– Em sessenta dias dom Antônio será transferido de prisão, e na nova prisão haverá um Cela Triangular.
– É justo, pois o próprio Deus é trino.
Em 29 de fevereiro de 1999, dom Antônio Cassarretas foi transferido para uma prisão de segurança máxima e ocupou a única Cela Triangular que ali existia.
A cela media 40 metros quadrados em formato triangular. A frente norte permitia boa iluminação solar, e reunia em seu interior móveis e utensílios que garantiam conforto e segurança à solidão de dom Antônio.
As paredes atendiam a um pedido de dom Antônio, fugiam ao padrão e não eram na cor branca, mais que isso, as paredes eram sem qualquer acabamento.
– Por que um triângulo perfeito com paredes imperfeitas? – foi a pergunta do inspetor Matias.
– Parece que o velho pretende pintar algumas telas. – explicou a assistente social.
O inspetor torceu o nariz inconformado.
– Psicopatas, não gosto deles!
O inspetor não estava conformado; passara dois anos investigando as empresas e a vida de dom Antônio; e tinha um saldo negativo.
Dois anos de auditorias, inserções fiscais, uma equipe de trinta auditores e nenhuma irregularidade nas transações empresariais do maldito Cassarretas. E quando toda a sociedade preparava-se para aclamá-lo como empresário do ano, o velho homem assume o sórdido envenenamento de onze deputados e três senadores em sua própria festa de aniversário.
Psicopatas, não gosto deles! – repetiu.
A primeira Tela
Dom Antônio tornou-se um número apesar de todos os privilégios que podia comprar; e nunca deixou de usar o terno italiano bem alinhado. Nos romaneios da penitenciária Alvorecer, ele era citado como o preso 776.
Era assim que o agente responsável pelas correspondências que chegavam aquela penitenciária, redigia as etiquetas que seriam colocadas nos envelopes e nas caixas com encomendas destinadas aos detentos, apenas um número; isso tudo depois de serem minuciosamente revistadas em seus conteúdos.
Naquela manhã dom Antônio recebera tintas, pincéis, canetas coloridas, lápis e telas – material de primeira, ferramentas de trabalho para nenhum mestre da pintura apontar defeito.
– Abuso de poder – comentou o agente, com a colega.
– Fale baixo e faça seu trabalho – disse a moça – não vai querer perder seu emprego por causa de um ideal, não é mesmo?
– Não. Mas que aí tem bem umas três vezes nossos salários, isso tem.
Ela riu.
– Não seja exagerado.
– Não sou! Veja essa nota.
Ele mostrou aquela DANFE para ela e concluiu meio desolado.
Três telas médias, modelo A-38/pegasusR1000.
– Olhe esses preços, que porcaria é essa? E quem paga um valor desses para um doido rabiscar tintas pra todo lado e chamar de arte?
Ela tornou a rir.
– Vá para casa Deniz, faça sexo com sua mulher, relaxe e esqueça dom Antônio, ele é só um velho milionário, que decidiu viver seus últimos anos na própria prisão.
Ele estava ansioso.
Abriu as caixas, separou os materiais e conferiu tudo.
Perfeito, em ordem e na qualidade que ele esperava.
“Agora comece Antônio!” – disse a si mesmo.
Apanhou a caneta e escreveu:
Carmélia era a mais viçosa, a mais alegre e a mais encantadora dentre todas; eu era o mais atlético, o mais promissor e o mais rico dentre os seus pretendentes, nenhuma lógica poderia nos separar, nenhuma lógica poderia alterar nossos caminhos para que não fossem lado a lado.
O amor?
Ora, o amor é um adereço de luxo, que os pobres insistem em colocar acima de tudo por não possuírem mais nada.
Meu professor de química dizia confiante:
– Antônio, a natureza às vezes é cruel com um homem. Basta a genética não conciliar muito bem os elementos na hora H e pronto; está feito o estrago. O pobre infeliz nasce com o nariz torto, vesgo, ou raquítico; e só por isso passará a vida toda sendo rejeitado; por mais talentoso, por mais carinhoso, inteligente e gentil que seja; será rejeitado, humilhado e até hostilizado por elas. E isso só será superado se o pobre infeliz, buscar para si, os aliados mais apropriados, e nessa guerra – química, biologia e matemática são imbatíveis meu jovem.
A química principalmente; é dela que dependem os fabricantes de vinho, sabia disso? E um vinho...um bom vinho servido numa hora de insegurança para uma mulher segura, fará com que ela não perceba o perigo que lhe escorre pela garganta; e ela beberá como Lilith, senhora de si, sem saber para onde estará indo. Um bom vinho meu jovem, despe as mulheres adultas melhor que seus próprios maridos – e perverte as jovens, atiça a necessidade delas em refazer fronteiras.
O homem belo, serve-se do vinho para ser servido pelas mulheres – o homem feio serve-se do vinho, para que as mulheres não percebam, que o desajustado, não lhes é conveniente.
Vinho, meu jovem; é química a favor do homem, desde que esse homem saiba utilizá-lo da maneira conveniente.
E depois de recordar ele escreveu:
– Obrigado professor e me perdoe também.
Aprendi senhor, que guardar as lições que nos são ensinadas é o mínimo que podemos fazer para honrar nossos mestres e que aplicar essas lições é eternizar nossos mestres.
O carcereiro da ala cinco, sentia-se um privilegiado; aquela era a ala mais limpa, mais organizada e menos tumultuada. O dinheiro do presidiário 776, bancava e mantinha o local num patamar surreal.
O almoço dos presidiários chegava diariamente, vindo de um dos restaurantes de dom Antônio, e os demais prisioneiros chamavam, aquela, a hora da nobreza.
Um afeto paternal, registrado sob um dos mais hediondos crimes do Cassarreta.
Ele escreveu ali:
Meu amigo do silêncio do sol, me ajuda sempre. Confio nesse jovem por sua presteza desinteressada, por sua obsessão em fazer o certo; isso é fidelidade das alturas, angelical. A nobreza dele vale minha obra, minha dedicação e meu legado.
Hoje ele trouxe o endereço; trouxe os detalhes do local. Disse-me sobre os costumes da família, das saídas e chegadas, dos donos da casa; onde dorme a senhora Lucia da luz, o senhor Adalberto de Siqueira Andaluzia da Luz, de seu jovem e infeliz rebento, retardadinho.
A segunda tela afixada em uma das paredes da cela triangular de dom Antônio, tinha a figura de um menino autista olhando o mundo de cabeça para baixo.
Sob o quadro a legenda desconexa.
“Liberte um homem e descobrirás o potencial criminoso dele, prenda-o, e ele lhe ensinará todas as técnicas para o exercício do crime; e no fim, lhe cobrará as lições ensinadas, em pequenos bônus de salvo conduto.”
Naquela manhã Denis estava mais revoltado que o de costume; entrou em silêncio e não cumprimentou ninguém.
– Não temos culpa pelo que aconteceu ontem à noite na penitenciária – disse a policial.
– Não estou culpando ninguém, só não vou distribuir sorrisos, por aí – respondeu ele – você sabe, os crimes que acontecem naquela ala, nunca são decifrados, e quando são, os culpados apenas somem ou são transferidos; ou enlouquecem, perdem a memória...ali o maldito Cassarretas manda nos vivos, nos mortos, nos livres e nos presos. Trabalho mais dois anos e deixo a corporação; mas juro a você que ainda descobrirei quem está sob o comando do Cassarretas e quem é o verdadeiro assassino daquela ala.
– O velho está pagando pelos crimes que confessou e já é o bastante, deixe-o pintando suas telas psicóticas e decorando aquela cela, como quiser.
– Você pensa mesmo isso?
– Claro que sim – diz ela – o velho está incomunicável com o mundo lá fora, as câmeras filmam até mesmo quando ele tem uma ereção, ele não tem como fazer parte desses crimes.
– Dora, você às vezes parece uma adolescente – resmungou ele.
Pegou o coldre, ocultou sob o blazer surrado e foi saindo; estava na porta quando disse:
– Estarei no escritório da empresa do desgraçado, hoje será o dia da posse do novo presidente.
– Você foi convidado?
– Engraçadinha, há dois anos; se quer mesmo saber, foi o Excelentíssimo senhor juiz dessa comarca que me enviou o referido convite.
– Então é verdade isso? Esse negócio de você ser um recruta do juiz dessa Comarca?
– Esse povo fala demais – mas, é mais ou menos isso sim.
Ele ligou o carro e saiu devagar pela avenida movimentada. Ainda podia ouvir em sua mente as palavras objetivas do juiz.
Quero que grude na família Cassarretas, cada passo deles, cada movimento de pai, de filho, neto, quero todos sob seus olhos.
Precisamos de uma prova concreta para colocar o culpado por aquela chacina, atrás das grades – mas lembre-se, se falhar, estamos todos fodidos, a sociedade cairá como abutres em cima da gente e o maldito acabará saindo como o grande benfeitor.
Dois anos.
Nesse período ele não conseguira sequer uma multa de trânsito contra os Cassarretas, e para piorar sua imagem aquela repentina confissão psicótica de dom Antônio. Era como se o maldito, tivesse pressentido que teria seus crimes desvendados e do nada optasse por dar em si mesmo um golpe de misericórdia.
A escolha por uma confissão em um templo religioso, durante uma cerimônia de batismo, num suposto surto de bipolaridade, num gesto anacrônico; fora o único, mas, apropriado motivo para que os advogados pudessem elaborar um plano de defesa para dom Antônio – no final uma decisão polêmica e sem sustentação.
O réu confesso, quer ficar recluso – a justiça por conveniência, dita a sentença e manda prendê-lo; a defesa para sustentar a inocência dele e por consequência preservar o patrimônio da família, transfere à própria justiça a obrigação de buscar garantias clínicas da sanidade do réu – o que de pronto – seria tido como complemento de prova contra si mesmo, fato que, por fim faria do réu uma vítima inocente da própria insanidade.
Ciente do imbróglio, dom Antônio subsidia a própria estada na prisão – sabendo que o tempo lhe seria favorável, pois as provas contra ele chegariam tardias e a ausência delas, eram agora convenientes aos seus propósitos.
Dora abandonou o jornal sobre a mesa e falou num desconsolo:
– Desperdício; uma equipe de advogados desse nível, apenas para afirmar que o réu é maluco, tão doido que exige a própria prisão!
– Às vezes penso que talvez esse velho não seja o autor de todos aqueles assassinatos – disse o inspetor.
– Pensa mesmo isso, senhor Nilo?
Ela tinha aquele costume de chamá-lo de senhor; era devido à idade dele já bem avançada; quase quarenta anos prendendo gente de todos os tipos, ele parecia farejar os grandes assassinos.
– Pois concordo com o senhor, ele parece mesmo estar protegendo alguém. Mas quem?
Nilo esticou os pés sobre a mesa e pensou alguns instantes, parecia conversar com o silêncio.
– Dora, minha querida, é tudo muito óbvio, e talvez por isso nada faça sentido. Dom Antônio tem um filho, um neto e um bisneto.
Com exceção do bisneto que tem apenas 14 anos; o filho e o neto tem idade e motivos óbvios para cometerem aqueles crimes.
– Impossível! - disse Dora - Eles estiveram em todas as comemorações e em todos os brindes; beberam junto com as vítimas. E estão vivos.
– É bem aqui que perdemos o rumo. Pois até mesmo o vinho que o réu alega ter envenenado, está limpo. Nada, nem a comida e nem a bebida; nenhum sinal de envenenamento.
– Mas o fato é que aqueles onze homens estão mortos. – Concluiu o policial.
O inspetor Nilo era um homem pragmático.
Ele não estava convencido das provas até então, expostas no tribunal.
– Se os peritos não encontraram sinais de veneno – então é porque aqueles homens já chegaram mortos para aquele encontro.
– Acha que foram envenenados fora dali? – indagou Dora.
– Mais que isso, eu diria até, dias antes.
– E a morte em grupo, fica por conta do acaso, da sorte ou do azar dos nossos deputados?
– Não. Acredito nesse garoto, acho que ele desvendará esse mistério.
– O Deniz? – pergunta Dora.
– Sim, ele é obstinado, isso o colocará no rastro da verdade. – diz o policial.
Ele abriu a porta do carro devagar e desceu sem tirar os olhos do hall de entrada do complexo de escritórios da Cassarretas Importações S.A; os cuidados eram sempre os mesmos. Ele observava por dez minutos todo o movimento ainda à distância e só então entrava no complexo.
A jovem recepcionista o conhecia, sabia de sua obsessão por informações.
Ela retirou a pasta branca da gaveta de sua escrivaninha e entregou a ele.
– Aqui estão todos os nomes de quem entrou até o momento na empresa para conversar com os diretores principais. E também os que ainda virão, na lista de agendamentos.
– Ele pegou a pasta e disse formalmente:
– Obrigado, Lúcia.
– De nada.
– Ah! Nos agendamentos, vai encontrar um nome assinalado com um asterisco.
– E do que se trata?
– Essa pessoa jamais esteve nessa empresa. – respondeu a moça.
– Obrigado menina, você é muito boa no que faz.
Ela riu, com o elogio, mas não conseguiu controlar o calor que lhe enrubesceu o rosto.
– Obrigada. – disse, ainda.
Ele entrou em sua pequena sala, trancou a porta e só então abriu a pasta. Correu os olhos por toda a lista de nomes já conhecidos e foi parar naquele nome em especial, aquele com o asterisco que a recepcionista falara.
– Giovanna Morelli.
Ao lado do nome, além do asterisco, a informação de origem; empresa e local.
Víveres e Cores – Milão – Italy.
Uma inquietação sem controle se apossou dele.
Vasculhou as gavetas rapidamente até encontrar a pequena agenda de capa verde musgo. Folheou e percorreu nome por nome até encontrar o que esperava.
Ligou para a telefonista.
– Coloque-me na linha com Gilceia Virella.
– A jornalista?
– Essa mesma.
O tempo foi curto.
– Gilce, é você?
– Sim.
– Gilce querida, sou eu, o Deniz.
Ela deixou escapar uma risada calma; Deniz, por onde você andou esse tempo todo? Eu devia imaginar.
– Imaginar? – indagou ele.
– Sim; já se vão dois anos e ninguém achou de me telefonar no meio do banho, especialidade sua né!
– É o gosto pela paisagem. – retrucou ele.
– O que você quer, seu psicopata?
– Ainda reside em Milão?
– Mantenho um apartamento lá; mas não fico muito por lá, sabe jornalista né.
– Sei; conhece Giovanna Morelli?
– A designer?
– Sim essa mesma.
– Vou entrevistá-la hoje.
– E onde será isso?
– No Cassarretas, mas, o que você quer?
– Que me apresente a ela?
– Quê?
– Preciso que me apresente a ela.
- Com que pretexto? Sou apenas uma entre as cem jornalistas que tentaram falar com ela hoje. Impossível.
– Sou responsável pela segurança do evento, e também pela segurança de Bryan Cassarretas, digamos que eu e ele viajamos juntos com muita frequência, o que acha?
– Ainda não vejo em que isso vai mudar minha vida – disse ela.
– Posso convencer o príncipe a conceder uns instantes de conversa inútil antes do jantar; digamos um pequeno atraso de uns vinte minutos.
Isso colocaria suas concorrentes fora de combate por uns minutos, o que lhe permitiria uma entrevista exclusiva com a nossa estrela.
– Sendo assim, posso dar um jeito – disse ela.
– Obrigado.
– Querida, sabe do senhor Bryan?
– Ele ainda não chegou, Deniz.
– Sabe que horas chega?
– Não, ele não me deve explicações.
– Ligue para ele, diga que é urgente; questão de segurança.
– Está bem, ligarei, aguarde na sala, não devo permitir ninguém ao telefone aqui no balcão.
Retornou para a sala e aguardou; foram poucos instantes e telefone tocou sobre a pequena mesa de vidro.
– O senhor Bryan, na linha – disse a jovem.
– Obrigado.
– Bom dia doutor Bryan, me perdoe mas, vamos ter que conversar sobre algumas mudanças para o evento de hoje; questão de segurança mesmo.
– Entendo – disse o homem – ajeite tudo aí e venha até minha casa!
Ele desligou o telefone e respirou fundo; as coisas estavam saindo como ele queria.
Por um instante ele recordou as palavras de seu avô. Um delegado das antigas, cheio de manias e superstições.
– Se vai querer um dia ser um investigador; aprenda a duvidar do óbvio. Aquele que mata por prazer pensa como uma criança e trabalha como um cozinheiro, o primeiro depende da mãe, dos ensinamentos dela, da comida, dos carinhos dela, e dos princípios morais que ela lhe planta – o segundo, admira aquela mulher, tanto que, saudoso do tempero da comida dela, tenta reproduzir em cada prato o cheiro e o tempero da última refeição que aquela mulher lhe serviu.
Retornou ao mundo real com um dos seguranças parado à sua frente.
– Mandou chamar senhor Deniz?
- Sim, Hélio. Preciso que fique por aqui por umas três horas. Ligado em tudo, anotando tudo e identificando todos.
– Sem problemas senhor.
Às 10:45 ele estava entrando no pátio da mansão de dom Antônio.
Ele desligou o motor do carro e aguardou até que o mordomo aparecesse.
– Doutor Bryan disse que o senhor pode subir. – informou o mordomo.
Ele já não lembrava mais de quantas vezes subira aquelas escadas.
Desde então, todas as vezes que o homem o recebia era a mesma situação, o mordomo, aparecia informava o que tinha para informar e desaparecia; e então ele subia as escadas.
Bryan o esperava na biblioteca.
Pragmático e inexpressivo, o filho de dom Antônio era uma espécie de incógnita familiar; vivia um casamento falido com a neta de um magnata de Florenza. Sua vida limitava-se ao boliche, e aos negócios. Ele expandira em todas as direções, lazer, alimentação, cosméticos, esportes...para todos os seguimentos o nome Cassarretas figurava graças a visão obcecada de Bryan Cassarretas.
– Entre! – disse ele.
– Com licença, doutor.
Ele apontou para a poltrona.
Deniz ajeitou-se na poltrona e esperou.
– Conte-me, o que está acontecendo inspetor.
– Irei direto ao ponto senhor.
– Por favor.
– Com a prisão de dom Antônio será inevitável iniciar o congresso sem que existam centenas de jornalistas desesperados naquele jantar. Eles vão cercá-lo e também não darão sossego à sua convidada italiana.
– Giovanna. – disse Bryan.
– Sim, essa mesma senhor.
– E o que você pensou, expulsarmos os jornalistas?
– Quase isso, senhor. Na verdade, pensei numa quebra de protocolo. Sua família toda estará presente nesse evento, não podemos correr o risco de facilitar para esses sanguessugas.
– E o que você sugere?
– Sugiro que na metade da tarde a imprensa seja informada que o senhor concederá uma entrevista coletiva no saguão do Villenium, para falar sobre as últimas decisões da justiça e também sobre a saúde de dom Antônio.
– No Villenium? Esse hotel é do outro lado da cidade! Isso vai causar um enorme transtorno.
– Essa é a proposta do doutor. Esgotar as perguntas da imprensa e dispersar parte dos jornalistas.
Bryan levantou-se e apontou para ele de maneira desafiadora.
– Faça isso acontecer e será promovido a delegado.
Antes de deixar a sala ele deparou-se com várias caixas de tintas e pincéis.
– O senhor também é pintor doutor?
– Não inspetor; meu neto de quatorze anos parece que saiu a dom Antônio. São dele essas caixas.
Ao longo do corredor ele notou que o garoto parecia mesmo um veterano na arte, pois os troféus e diplomas de honrarias em nome do pequeno Cassarretas se multiplicavam na parede.
Ao entrar no carro ele telefonou para Dora.
– O que você quer – perguntou ela.
– Lembra que você disse que a única informação em comum das vítimas da chacina é que todos participaram de um leilão?
– Sim.
– E sabe que leilão foi esse?
– Um leilão de obras juvenis, na ocasião foram leiloadas obras de um tal de Ginno Morelli.
– Tem certeza que é esse o nome?
– Sim, todas as vítimas tinham algum quadro deste pintor.
Ele emudeceu por um instante e desligou.
O próximo passo era encontrar Gilcéia.
Proximidades de algum hotel de luxo da cidade, 15h35 minutos.
– Alô!
– Preciso falar com você agora, posso subir?
– Aguarde aí embaixo já desço.
Ela desceu em seguida.
– O que está acontecendo?
– Dependendo do que você me dizer acho que estou a dois passos de descobrir quem é o assassino daquele grupo de políticos.
– Todos sabem que esse caso está resolvido, o velho Cassarretas está preso por ter confessado aqueles crimes – disse ela.
– Pois é, mas a polícia nunca deixou de trabalhar na possibilidade de ele estar protegendo o verdadeiro assassino.
– Qual a relação de Giovanna Morelli com a família Cassarretas? O que você sabe?
– Onde você quer chegar Deniz?
– Ginno Morelli. Esse nome lhe diz alguma coisa?
– É o bisneto de dom Antônio – diz ela.
– Sabe que o garoto é pintor?
– Sim, sei sim.
– O garoto é um prodígio, expõe quadros em diversas galerias pelo mundo; porém é problemático ao extremo e não se adaptou nas escolas convencionais. Foi criado pelo avô, e se envolveu em diversas brigas e até algumas situações bem violentas, nada que o dinheiro do avô não tenha encobertado, como o episódio do estupro de uma garota inglesa numa festa teen.
– Ainda não entendi onde você quer chegar?
O garoto só produz seus quadros sob encomenda; e só os assina na hora em que entrega ao cliente que fez o pedido.
– Muitos pintores modernos trabalham assim. Não vejo problema algum nisso.
– Nem eu; o detalhe é que o empresário do garoto exige duas coisas no mínimo excêntricas para a produção do quadro.
Para assinar a obra o proprietário precisa contribuir com uma pequena amostra do próprio sangue para que o artista misture a tinta com a qual assinará a obra.
A outra cláusula é que o quadro jamais poderá ser comercializado, exceto com o próprio artista; e isso vale também em caso de morte do proprietário da obra, que não poderá deixá-la aos herdeiros, posto que o único herdeiro da obra é o próprio artista.
– Como sabe disso tudo?
– Dois anos de trabalho junto àquela família.
– Mas até ontem eu não sabia que o empresário do garoto chama-se Giovanna Morelli, você sabia disso, Gilce?
– Não. Mas talvez tenha a informação que você procura. Giovanna Morelli é a mãe do garoto e está aqui para reivindicar os direitos do menino na herança de dom Antônio. – explicou Gilce.
Ele pensou por um instante e tornou a falar.
– Na condição de mãe e empresária do garoto, ela o acompanha em todos os eventos e até mesmo na entrega das obras, que é quando o garoto assina as obras, certo?
– Sim, ela transformou a assinatura dessas obras num evento de marketing extraordinário. – responde a jornalista.
– Só que esses eventos jamais anunciaram que ela é a pessoa responsável pela coleta de amostra de sangue do comprador da obra. Certo?
– Isso pode estar ligado à morte daquelas pessoas todas?
– É possível. Veja, as onze pessoas mortas eram todos políticos; todos possuíam uma obra de Ginno Morelli, adquirida num leilão em que somente políticos participaram. Eles adquiriram as obras lá, as obras foram assinadas no ato do arremate, e todos os compradores submeteram-se a coleta do próprio sangue para que o artista assinasse sua obra. Curiosamente, a enfermeira responsável por essa amostra sanguínea não poderia deixar de ser alguém de plena confiança; nesse caso a mãe do artista, a empresária e conhecida enfermeira do exército italiano Giovanna Morelli.
Isso também explica o fato de os peritos jamais terem encontrado indício algum de envenenamento das vítimas conforme o relato de dom Antônio.
– E como se explica as mortes?
– Simples, todos foram envenenados antes, num outro momento, ou seja no dia do leilão.
Nossa enfermeira ao coletar as amostras de sangue, injeta num primeiro momento uma pequena dose; um composto a base de benzeno que ficará armazenado no tecido gorduroso da vítima até o momento em que em contato com outro elemento estrategicamente acoplado a algum alimento desencadeará a ação do veneno.
– E esse desencadeamento ocorreu durante o referido jantar ao qual dom Antônio se referiu para confessar o crime? – Indagou Gilce.
– E por que ele faria isso?
– Porque dom Antônio já sabia que a mãe do garoto estava agindo dessa maneira para garantir que as obras retornassem ao seu poder. Ou seja, ela vendia as obras do filho, garantia através de contrato o retorno das obras ao próprio artista, e acelerava esse processo providenciando a morte dos proprietários das obras.
– E o que pretende fazer com essas informações? – perguntou ela.
– Entregar ao delegado, mas antes quero falar com dom Antônio.
– Posso publicar isso? – perguntou Gilce.
– Eu acho que lhe devo um presente de aniversário, não é?
– Dois. – respondeu ela – mas o outro, vou cobrar na festa da sua promoção, futuro delegado!
Fim
Produção Four Elements
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
REALIZAÇÃO
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