“Aprendendo a ser louco”
Juju arregalou os
olhos para a rapaz magrinho que entrou na quitanda usando uma camiseta com
esses dizeres.
- Esse é um dos elfos
de Natal – disse o quitandeiro para a menina.
O rapaz piscou um olho
para ela e tentou em vão puxar assunto. Do outro lado da rua a mãe da menina a
vigiava da janela. Maneco, o quitandeiro, notara o excessivo zelo da vizinha e
acenou para ela.
- Mamãe está esperando
pelos abacaxis – disse a menina, séria, alongando um rabo de olho para o
aprendiz de louco.
O rapaz tirou do bolso
uma foto:
- Olha aqui, na festa
do ano passado, estou ao lado de Papai Noel
- É um Papai Noel de
loja. E você deve ser um elfo de loja também. Uma pessoa que recebe dinheiro
para vestir uma fantasia.
- Não, eu não recebo
dinheiro nenhum. Nos dias normais eu sou um bailarino. Danço no balé Orgone.
Quando chega dezembro, o espírito de Natal me transforma em um elfo. O que você
vai pedir de presente?
A menina deu de
ombros.
- Eu sou uma menina
crescida de nove anos. Meus pais disseram que Papai Noel não vai vir mais para
mim.
- Se você pudesse
ganhar um presente, o que pediria?
- Um livro de Monteiro
Lobato. O saci.
- Por que exatamente O saci?
- Porque era o livro
que vovô estava lendo para mim quando a gente fugiu do Araguaia.
- Você morava em
Tocantins?
- Pará.
- Eu me chamo Daniel –
disse o elfo, estendendo a mão para a menina, que recuou, enfiando as mãos bem
fundo nos bolsos. – Posso ao menos saber o seu nome?
- Jurema – os olhos
claros e fundos da menina brilhavam.
- Fale um pouco mais
sobre você, eu quero ouvir sua história.
Maneco, inquieto, ia
interromper, porém a menina animou-se:
- Vovô lia para mim
todas as noites. Ele leu o livro Reinações de Narizinho inteirinho, algumas
histórias da Tia Nastácia, uma porção de Fábulas, e estava lendo O saci. Na
última noite ele parou de ler bem quando Pedrinho descobre que um saci leva
para nascer exatamente sete anos, sete meses, sete dias, sete horas e sete
segundos. No dia seguinte a gente saiu de casa sem almoçar e tão rápido que nem
deu tempo de eu me despedir do vovô.
- Você se mudou para
cá.
- A gente fugiu mesmo.
Meu pai pegou uns papéis importantes, a mãe juntou umas roupas, eu trouxe minha
boneca e só. Uns homens maus mataram o vovô e estavam atrás do papai também.
Para alívio de Maneco,
dona Filomena deixava a casa e atravessava a rua em busca da filha.
- Que demora, Juju. Eu
não gosto que você fique de conversa com estranhos.
- Muito prazer, minha
senhora. Daniel, elfo de Papai Noel a seu dispor.
- Muito prazer,
Daniel, elfo de Papai Noel. Cadê meus abacaxis, Maneco? Juju volta comigo para
casa agora mesmo.
- Seus abacaxis estão
aqui, freguesa. – e Maneco virou-se para Daniel – A dona Filomena faz as
melhores balas do morro.
- Adoro balas. Tem
alguma aí de prova? Deixe um saquinho para mim aqui com o Maneco que amanhã
depois do almoço eu pego, quando vier trazer o caminhão. Quer que lhe pague
adiantado?
- Dez reais a receita.
Dá aí umas 50 balas.
- Combinado. Pegue o
dinheiro. E deixe uns cartões, quem sabe eu lhe arrumo uns clientes.
- Cartões, jovem? Isso
aqui é o morro.
Daniel sorriu.
- Até amanhã, então.
No dia seguinte
Filomena veio entregar as balas.
- Boa tarde Maneco,
fique com a encomenda daquele moço esquisito.
- Ele é gente do bem,
dona Filó.
- Conversou demais com minha Juju.
- Cadê ela?
- Em casa estudando.
Seguindo os conselhos do irmão. É meu orgulho, meu Moacyr. Saiu ao pai. O
senhor foi muito bom com a gente, Maneco, fazendo fiado estes meses todos em
que meu marido ficou desempregado. Agora ele está bem colocado lá na Usiminas,
vai ganhar uma cesta com peru e presunto no Natal, o que vai garantir a ceia,
graças a Deus. E o Moacyr se ajeitou em uma vaga de aprendiz em uma fábrica aí do porto; trabalha 4 horas, estuda 4, e disse que se a firma gostar dele,
depois do curso ele pode ser contratado. Pois o menino fala para a irmã bem
assim: “Faça como eu. Estude e aprenda um ofício. Eu vou ser um técnico, mas
você é mais inteligente que eu, se tirar uma boa nota no ENEM pode até cursar
uma faculdade.” Eu tenho orgulho desse meu filho, Maneco. Nossa família é
assim, somos pobres, mas temos estudo. Os filhos aprendem leitura e tabuada.
Nunca faltou livro em casa. Meu pai sempre ensinou que livro é mais importante
que comida. Livro alimenta a alma.
- Dona Filó, não
chore.
- A gente vivia tão
bem lá na fazenda até aqueles “sem terras” resolveram se apoderar da fazendo do
patrão...
- Uma tragédia, dona
Filó.
Maneco ofereceu um
copo de água para a vizinha.
Um caminhão se
aproximava. De dentro dele desceu Daniel, que abriu o portão do depósito para o
motorista e veio pegar suas balas no balcão. Juju, que espiava pela janela,
saiu de casa e correu para perto da mãe.
- Bom dia, dona Filomena. Boa tarde, Juju. Boa
noite, Maneco. – disse o elfo, fazendo a menina rir – Conte para mim, menina,
do que você gosta, além de livros?
- Eu gosto do rio, dos
bichos, das árvores. Eu gosto das noites cheias de estrelas que eu via da
varanda lá onde a gente morava antes.
- Seu moço, hora de a
gente ir embora – interrompeu Filomena. Com passadas rápidas arrastou a filha
de volta para casa, ambas fungando alto.
- Essa família aí –
afirmou Manuel – é gente direita.
- Eu sou torto, por
acaso? – Daniel girou desengonçado fazendo o quitandeiro rir.
Daniel pertencia a um
grupo chamado Tam Tam. De início, eram psicólogos e professores de arte que se
reuniam pra trabalhar com doentes mentais, crianças deficientes e incluíam em
suas atividades pessoas normais que quisessem participar de projetos sociais.
Muitas atividades aconteciam e acontecem ainda na cidade por causa desse
pessoal inclusivo: dança, teatro, discussões artísticas, aulas de pintura,
programas de rádio, banda carnavalesca e a passeata de Natal, para a qual
Maneco contribuía emprestando o depósito para guardar alguns das centenas de
presentes distribuídos para as crianças do bairro.
Na manhã do dia 24 de
dezembro, Juju, a garota de nove anos que estava crescida demais para ganhar
presente de Papai Noel, ouviu a grande agitação nas ruas. Abriu a porta para
espiar e chamou o restante da família.
Lá longe vinha um
trenó puxado por renas. À frente, dúzias de elfos dançavam e cantavam, pegando
as crianças pelas mãos. Formavam-se pequenos grupos ao redor de cada elfo. Eles
contavam histórias curtas sobre o Natal antes de entregarem os presentes.
Juju apertou a mão do
irmão e ficou olhando de longe, sem se misturar. As outras crianças do morro
estavam correndo e pulando de alegria por toda parte. Cantavam, dançavam,
mostravam o carimbo que os elfos estampavam nas mãos de cada criança que
recebia um presente. Eram figuras variadas: renas, estrelas, trenós...
Os olhos de Juju acompanhavam enquanto elas abriam os
belos embrulhos coloridos, rasgavam as embalagens e gritavam de prazer. Os
brinquedos eram todos novos e diferentes: bonecas, carrinhos, jogos,
quebra-cabeças, bichinhos de pelúcia.
Juju apoiou a cabeça
no braço do pai, certa de que para ela, uma menina crescida de nove anos, não
haveria presentes. De repente, uns olhos vivazes piscaram para ela. O elfo
Daniel lhe entregou um embrulho vermelho com laços de fita dourados.
- Jurema, viva o
espírito de Natal. Papai Noel mandou este presente especial para você. – Ele
piscou-lhe um olho – Direto do Polo Norte.
Juju estendeu as mãos,
retendo um suspiro, e leu seu nome no belo cartão:
“Para Jurema, com
carinho. Acredite na vida. Tenha fé no amor. Papai Noel”.
Filomena agarrou o
elfo e sapecou-lhe um beijo em cada bochecha. Suas mãos tremiam. Seus lábios
tremiam e de sua boca não saía som algum. O marido pousou a mão no ombro do
rapaz, que apertou com força, e olhava ora para as ruas, ora para a filha..
Daniel fez uma reverência engraçada e sumiu-se na multidão.
Juju estava pulando e
gritando de alegria, abraçando contra o peito O saci.
Ela estava agora decidida a crescer para também
“aprender a ser louca.”
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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