2x07 - Mão Amiga
de Evandro Valentim de Melo
O ritmo de trabalho em novembro era sempre assim, entrega de inúmeros relatórios,
prestação de contas, razões pelas quais o orçamento não foi executado... Tudo deveria
estar pronto antes de findar o exercício. “Por que deixam tudo para o final do
ano?” – perguntava-se.
Contra sua vontade, naquele dia, o intervalo do almoço durou pouco mais
de meia hora, viu-se obrigado a trocar uma refeição decente por sanduíche.
Foco nas duas telas sobre a mesa. À esquerda, tabela transbordante de
numerais, com matéria prima ao relatório, na tela da direita. O cansaço, até relevava,
já o cheirinho de café vindo da copa... Depois de quase duas horas sentado,
Otto se ergueu. Espreguiçou-se. O corpo necessitava cafeína.
Enquanto saboreava os prazeres do conteúdo de sua caneca, ouviu parte da
conversa entre Diana, a copeira do andar, e uma das assessoras do presidente da
empresa.
— Seu filho está melhor? - Questionou a assessora.
— Ainda bem triste, Lilian. A professora dele até me chamou para ir à
escola. As notas foram muito ruins.
— Compreensível essa reação, Diana. Perder o pai afeta a vida de qualquer pessoa,
ainda mais uma criança com apenas oito anos de idade.
— Estou tão preocupada. Ele nem quer voltar às aulas.
Às 18h27min. Otto escreveu o ponto final no extenuante relatório. Enquanto
descia as escadas para sair do prédio, lembrou-se da conversa ouvida. Otto se
viu dezesseis anos atrás, quando seu pai falecera. Refletiu: “se eu, adulto,
sofri quando meu pai se foi, imagina uma criança de apenas oito anos, que vazio
deve sentir...”.
Deu-lhe vontade de fazer algo. Dirigiu-se a uma papelaria. Adquiriu
caderno de folhas brancas, lapiseira, borracha, apontador, régua e canetas e
lápis de colorir. “Meninos, normalmente, gostam de carros”, pensou. Juntou aos
itens, um livro em rica encadernação com belas fotos de carros.
Naquela noite, seu saudoso pai o visitou durante os sonhos. Otto amava aquele
homem tão importante na formação de seu caráter.
Ao amanhecer, tão logo chegou ao trabalho, Otto se dirigiu à copa:
— Bom dia, Diana.
— Bom dia, senhor Otto, precisa de algo?
— Um
cafezinho seria ótimo. Ontem à tarde, eu não pude deixar
de ouvir quando você falou de seu filho; do sofrimento pela perda do pai. Mal
nos conhecemos, porém, se me permitir, gostaria de tentar ajudar. Qual o nome
dele?
— Diego.
— Reconheço
faltar mais de um mês para o natal, mas este é meu presente antecipado para o
Diego. Nesta caixa há um livro muito bonito com fotos de carros e um bocado de
coisas para quem gosta de desenhar. A ideia é distraí-lo, para pensar em outras
coisas, a fim de, aos poucos, superar a dor da perda paterna... Quando eu era
criança, gostava muito de desenhar...
Diana, bastante emocionada e surpresa, segurou as lágrimas:
— Nem sei o que dizer. Muito obrigada, senhor Otto. Foi muita gentileza.
Diego adora carros - disse emocionada.
— Queria sugerir um passatempo, uma disputa entre mim e Diego, se você concordar
e ele aceitar. No caso de um sim, diga-lhe para escolher um dos carros do livro
e o desenhar. Você traz o desenho e me mostra. O desafio é para saber quem de
nós desenhará melhor. Eu também desenharei alguns carros e você levará para o
Diogo ver.
— A ideia é ótima. Tomara que ele aceite.
Ao chegar em casa, Diana encontrou as luzes da casa apagadas e o filho
na sala, em silêncio.
— Oi, Diego. Um amigo da mamãe pediu para eu lhe dar isso. Disse que é seu
presente de natal antecipado.
A mãe notou um lampejo de alegria no olhar do filho. O sutil brilho
iluminou o lar mais do que o acender das luzes. Diego rasgou o papel de
presente, abriu a caixa e se deparou com seu conteúdo. Folheou o livro e, um a
um, examinou os demais itens.
— Gostou? Preciso de dizer ao meu amigo.
— Gostei, mãe.
Mãe solo de criança pequena, a enfrentar a vida para garantir o sustento
da família, não pode se dar ao luxo de descansar. Era hora de preparar o jantar
em quantidade suficiente para sobrar ao almoço do dia seguinte, para Diego se
alimentar. Enquanto jantavam, Diana aproveitou a deixa e contou a Diego sobre o
desafio.
Perto da hora de se recolherem ao sono reparador, Diego procurou a mãe
e, com uma folha de papel e disse a ela:
— Leva pra ele, mãe.
— Ficou lindo, filho. Duvido meu amigo fazer melhor.
Dias depois, novo desafio foi proposto por Otto: ele e Diego criarem,
juntos, uma história em quadrinhos. Desafio aceito. Otto iniciou. Enviou o
desenho de um famoso super-herói acompanhado do texto correspondente ao início
da história.
Entusiasmado, Diego se empenhou em fazer um desenho à altura do recebido.
O sofrimento do menino cedia espaço a outros sentimentos. Não deixou de pensar
no pai, contudo, a saudade doída a entrar sem pedir licença, perdia vigor.
Otto, por sua vez, viu reavivada a sua porção criança. Mesmo ainda não
tendo conhecido Diego pessoalmente, a relação estabelecida ocupava
significativo espaço em seus momentos de lazer. Aguardava com ansiedade o passo
seguinte da história em curso. Diego demonstrava ser bastante criativo e, não
raro, conduzia a trama da história para situações inesperadas. Várias vezes, Otto
se viu obrigado a rever a continuação antes imaginada.
Concluída a história em quadrinhos, ela juntava consagrados personagens
da Marvel, da DC, da Turma da Mônica
e da Turma do Pererê. Um belo e lúdico caldeirão. Otto organizou as folhas com
os desenhos e encadernou. Feliz com o resultado, entregou a Diana.
— Peça
a Diego para levar à escola e mostrar à professora. Talvez se sinta mais
motivado a retomar os estudos como antes.
Bons ventos sussurraram a Otto e outro desafio foi apresentado a Diego: uma
nova história. Contudo, dessa vez, o menino daria o primeiro passo, o desenho e
o texto inaugurais.
A ilustração mostrava uma coruja empoleirada em um galho, acompanhada do
texto: “Era uma vez uma coruja totalmente diferente das outras”.
Otto pensava: por que essa coruja seria diferente? Na página seguinte, fez
um morcego voando ao lado dessa coruja. “Ela terá um amigo morcego. Diferentemente
dos demais de suas respectivas espécies, serão os melhores amigos um do outro.
Também preferem a luz do sol ao invés da vida noturna".
Diego e Otto se revezavam a cada nova página da história, desta vez ambientada
na maior floresta tropical do mundo, na mira de um perigoso vilão, cujo intento
consistia em destruí-la. À trama se juntaram personagens do folclore
brasileiro, das mitologias indígena e grega e vários outros animais da fauna
amazônica. Um variado elenco criado a partir da interação entre uma criança de
oito anos e um “cinquentão”.
Otto ficara encantado com o resultado da parceria. Tanto que consultou Isabela,
uma amiga editora:
— Por
favor, avalie esse trabalho e me diga o que acha.
Isabela leu com atenção e confirmou a suspeita de Otto:
— Sem dúvida daria um ótimo livro de literatura infantil. Muito legal
vocês resgatarem nosso folclore, nossa mitologia indígena e a de outros povos. Incluíram
uma “pegada” ambiental de preservação da floresta amazônica. Tudo construído
por uma amizade ímpar, a misturar faixas etárias tão distantes uma da outra.
Vamos publicar?
Na semana anterior ao natal, o restaurante se encontrava cheio. Em uma
mesa central, lado a lado, Otto e Diego, autores de “Os guardiões da floresta”
autografavam exemplares. À frente deles, a fila não parava de crescer. Otto se
divertia com a ingenuamente de Diego, sentindo-se uma celebridade.
Diana não cabia em si de orgulho. Sem dúvida, aquele era um dos dias
mais felizes de sua vida. Ela pensava: “a empatia de um adulto, que nem fazia
parte de suas relações de amizade, por seu filho, em um momento de grande
sofrimento, aos poucos, mudou a vida de Diego. Começou como uma simples
brincadeira, mas foi, na verdade, um resgate”.
Dias depois, chagara a noite de 24 de dezembro. Diana e Diego se
encontravam com familiares. O primeiro natal com o pai ausente, oprimia o
coraçãozinho do menino. Um tanto dengoso, ele se aconchegou à mãe.
— Fica
assim não, meu filho.
—
Quero ir pra casa.
Diana aquiesceu.
Despediu-se de todos, desejou-lhes feliz natal e foi para casa, levando
consigo, em embalagens de sorvete, um pouco de comida para a ceia de natal para
ela e o filho.
Já em
casa, ela vestiu a mesa com uma toalha nova, pôs dois pratos, talheres e copos
à mesa e disse ao filho:
— Seu
pai, de onde estiver, lhe vê, Diego. E deve estar orgulhoso pelo filho ter se
tornado escritor tão novinho. Venha para a mesa, vamos celebrar o natal.
— Mãe,
se Papai Noel existisse, sabe o que eu pedia a ele?
O som
de palmas em frente ao portão, impediu Diana de saber o pedido do filho a Noel.
Ao olhar pela janela, nem acreditou:
—
Filho, olha só quem veio nos visitar!
— Quem
é, mãe?
— Boa
noite, Diego, Diana... Desculpem-me vir sem avisar. Tenho uma notícia boa
demais. Precisava contar a vocês ao vivo e em cores.
— Mãe,
vou pôr mais um prato “na” mesa. Otto vai jantar com a gente.
— Não
precisa, não vou demorar...
— Não
senhor, fazemos questão, onde comem dois, comem três. E diga qual é a notícia
tão boa, que lhe trouxe tão longe? – falou Diana.
—
Nosso livro está entre os dez mais vendidos do mês. Fomos convidados por um
programa de TV. Que tal?
O trio
brindou a boa nova com refrigerante em copos simples. Diego pulava de alegria.
Mais
tarde, um excitado Diego, mesmo na cama, resistia a dormir.
— Quer
aparecer com olhos de panda na TV?
— Não,
mãe. Quero estar bonitão.
—
Então, boa noite. Sonhe com os anjos.
Bem
longe dali, Otto e Isabela também celebravam o feliz
momento, com o sucesso editorial de ‘Os guardiões da floresta’.
—
Feliz natal, minha querida amiga.
—
Você, este ano, comprovou que Papai Noel existe, Otto. Brindemos ao Bom
Velhinho. Feliz natal.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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