2x10 - O Presente (In)Desejado
de Marcelo Cruz
O som desnecessariamente prolongado de uma buzina fez José
despertar sobressaltado. Ele xingou o motorista irritado e voltou a se deitar,
cobrindo os cabelos desgrenhados com o cobertor sujo, no entanto, ele sentiu o
toque de Maria sobre o braço e ouviu sua voz rouca lhe falar:
-Feliz Natal!
José abaixou o cobertor e mirou a companheira com os olhos
semicerrados. Ela estava de pé, ao lado do colchão encardido em que o casal
dormia, e sorria para ele com os dentes amarelados e um brilho atípico nos
olhos avermelhados e cheios de olheiras.
José pensou em ignorá-la e voltar a dormir, no entanto,
percebeu que ela lhe entregava uma caixinha, que cabia na palma de sua mão. O
objeto era uma montagem improvisada de um dos papelões sobre a ponte e não
parecia guardar nada que valesse o sono de José.
-Pega, abre – pediu Maria, afastando os cabelos esfumaçados
do rosto negro.
Sonolento, José ergueu o tronco e se enrolou no cobertor,
protegendo-se do frio cortante daquela manhã. Não fosse a cobertura da ponte,
ele teria congelado durante a noite.
-Pega homem – repetiu Maria.
José a fitou e, em seguida, mirou novamente a caixinha de
papelão, especulando o que poderia haver ali que pudesse interessá-lo: alguma
joia? Dificilmente. Maria não tinha coragem para roubá-la de alguém. Dinheiro?
Não, ainda era muito cedo para esmolas. Talvez fosse comida. O estômago
barulhento de José desejava que fosse comida. Porém, nada que coubesse naquela
caixinha seria suficiente para matar sua fome.
-O que é? – ele decidiu questionar, apaticamente.
-Pega logo! - Maria insistiu, o sorriso dando lugar à
impaciência.
-Não quero - José deu de ombros.
-Mas você nem sabe o que é! - ela retrucou, indignada.
-Nada de bom cabe aí – concluiu José, imitando o tamanho da
caixa com as mãos.
-Você não sabe – afirmou Maria.
Naquele momento, José reparou que os olhos da companheira
estavam inundados por uma ansiedade que beirava o doentio. Diante disso, uma
nova hipótese lhe veio à mente e o fez perguntar, cheio de ansiedade:
-É pedra?
O brilho no olhar de Maria murchou.
-Não - ela respondeu, secamente, deixando-se escorregar
sobre os papelões.
-Se fosse, pelo menos sumia com a fome e com o frio. Se não
é, não quero – ele falou. – O que cabe aí de bom? Uma casa? Um carro desses
daí? – ele apontou desengonçadamente para os automóveis que passavam à frente. –
Não cabe nem um prato de comida.
Maria começou a chorar, apertando a caixa com desconsolo.
-Você não presta mesmo – ela soluçou.
-E você presta, mulher? – perguntou José, irritado. – Nóis
não presta! – ele acrescentou, abrindo os braços e olhando o ambiente que os
rodeava.
Maria chorou ainda mais.
-Eu só queria te dar um presente de natal… – ela lamentou.
-Natal não é feito pra nóis – ele retrucou. – Vai
comemorar o quê? Seu presente vai tirar nóis daqui de baixo?
Maria sacudiu a cabeça negativamente.
-Nada vai tirar a gente daqui – ela lamentou, limpando as
lágrimas e, novamente, estendeu a caixa de papelão para o companheiro. – Mas você
precisa ver o presente…
-Eu não quero! – berrou José, desferindo um tapa na mão de
Maria e fazendo a pequena caixa cair e rolar sobre a calçada, até se abrir,
deixando uma pequena chupeta escorregar de seu interior.
José olhou surpreso para o objeto. Quando se virou para
Maria, ela o aguardava com os olhos arregalados e amedrontados, a boca
entreaberta e a mão pousada sobre a barriga.
Como se Maria tivesse lido a pergunta se formar em seu
semblante, ela assentiu positivamente para ele, que não pode conter as lágrimas
que desceram pelo rosto encardido.
José envolveu a mulher em seus braços e os dois choraram,
até que finalmente se entreolharam e, em silêncio, se permitiram sorrir.
Naquele momento, o frio, a fome e o sono haviam diminuído, o som dos carros ficou distante e o colchão do casal pareceu se desprender da realidade, transportando-os para um mundo à parte.
Naquele mundo, José e Maria compartilharam o
abraço mais natalino já visto. Um abraço que extraiu alegria do desalento e
humanidade da miséria.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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