Antologia A Magia do Natal: 2x16 - O Saxofone Azul

 

Sinopse: Jovem, natural de Recife, é convidada pela irmã a passar as férias da semana de natal em Florianópolis. Logo a sua chegada, ainda no aeroporto, após os beijos e abraços repletos de saudades é “convocada” para um inusitado desafio: pular de um altíssimo Bungee Jumping, a recente atração da cidade. Após a frustrante aventura fica totalmente transtornada, então, ensimesmada, procura se refugiar consigo mesma, quando acontece um inesperado romance.



2x16 - O Saxofone Azul
de Paulo Luís Ferreira

Diante ao que vou expor posso parecer idiossincrática, pouco circunspecta e até mesmo um tanto ensimesmada. Entretanto, eu me definiria como audaciosa. E ser audaciosa e destemida a meu ver, é alguém que busca o improvável. Não necessariamente o impossível, mas aquela que acha ser a vida uma aventura com a dimensão dos sonhos. A que busca os extremos dentro do consigo. A considerar ser este prenúncio apenas uma forma de insinuar e ao mesmo tempo expor os acontecidos comigo naquelas Férias de Natal. E para que as pessoas não se surpreendam com meus melindres, porque aqueles dias foram para mim como um mar, cujas salinas serviram de divisora para a história de minha vida.

Naquele momento estava eu a digerir sobre um relacionamento mau terminado. Quando fui convidada para uma viagem, no mínimo oportuna, digamos assim. Minha irmã, por motivos profissionais, havia se mudado de Recife para Floripa. E estava me convidando para visitá-la. O que não estava no roteiro era o que eu iria encontrar logo ao desembarcar no aeroporto. Duas surpresas: a primeira: caía um temporal, cuja perturbação atmosférica violenta, disseram ser sem precedentes. A segunda: já em companhia de minha irmã, logo após os primeiros beijos e abraços repletos de saudades e emoção, no saguão do aeroporto, me surpreende com seu inusitado convite em forma de desafio, saltar do Bungee Jumping. – a nova atração da cidade – Poxa! Logo eu que nunca saltara do primeiro trampolim das piscinas que frequentei; tinha medo de pular até da primeira cama do beliche, quando criança.

     À noite assistimos a uma intrigante peça teatral: Apesar de macabra, porque só falava de morte. Contudo, muito me impressionou, visto a velocidade e a perfeição da performance e a metamorfose dos atores. Em instantes eles trocavam de roupa, peruca e maquiagem, encarnando novos personagens; outra voz, outra personalidade; e tudo com um vigor que só podia existir mesmo no palco.

     Enfim, o domingo ensolarado de céu retinto de azul e nuvens em lã de carneiro. Um belíssimo dia de verão. Milhares de turistas zanzando pelo calçadão e nas areias da praia. Logo pela manhã começaria meu suplício: ainda enquanto esperava a cabine que nos elevaria a grande torre do Bungee Jumping. Estávamos na fila quando dei acordo da minha pessoa e sentir pelo corpo uma gélida euforia neurótica.

O elevador demorando mais do que devia. Não fazia sentido aquela demora. Queria não pensar em nada, mas a mente logo começou a conjecturar insólitas situações. Fechei os olhos por um instante reabrindo-os em seguida. A fila crescia e ninguém reclamava da demora. Um homem a minha frente, de pescoço grosso e cabeça redonda, lia o jornal calmamente. Num estalo a porta da cabine se abriu ao rés do chão. Entrei como quem caminha para câmara de gás, agarrando-me às paredes de vidro.

Ao desembarcar no topo da torre a deslumbrante vista premiava toda a expectativa e desabonava o vexame vivido. De onde pude ver grande parte da bela paisagem de Floripa. Numa simbiose das pontes, Pedro Ivo e a exuberante Hercílio Luz, ligando Florianópolis à parte insular, dita a “Ilha da Magia” com o mar interligando tudo.

Dirigindo-me para a plataforma de preparação para o salto, o coração a cada segundo descompassava sua arritmia. A falta de regularidade e do ritmo era uma constância. Creio que os suicidas ao encostar à pistola na fronte sentem o mesmo pânico que eu senti naquele instante. O que iria acontecer em seguida? Os olhos acinzentaram-se e todo o corpo amarelou. Diante o abismo.

Logo no impulso alvoroçado da queda ao ver a imensidão de mundo que se descortinava a minha frente e o uivar do vento, vejo ao meu lado, flutuando destemidamente, livre e esvoaçante, a própria morte! Paralisada, desferi uma frase um tanto inconsciente para ela, pois veio à mente a lembrança do espetáculo teatral da noite anterior. Quando falavam da morte da geometria, da morte das hipóteses e a morte da própria morte. Então a cumprimentei com um sonoro:

— Oiii!... Dona Morte!... – e ela respondeu indagando:

— O que você faz aqui?      

— Estou treinando para morrer. E a senhora?

— Ora, você já deveria estar ciente. Eu sou a própria morte!...

Pelo jeito a morte também não queria morrer, pois estava cheia de asas. O resto foi tudo silêncio. Desde o céu até o asfalto. Os hormônios se diluindo na corrente sanguínea... Eu sabia estar ali suspensa no espaço. Mas, por estar vivendo certo delírio, não me apercebi da proximidade do fim de tudo: o drástico choque com o chão. A vida já não existia mais em mim. Foi neste instantâneo que me dei conta, pelo impacto do fim da corda elástica e o respectivo repuxo. A sensação do vento a golpear, açoitando o corpo, despertando-me violentamente do transe ao qual estava mergulhada. Os impulsos para cima e para baixo simultaneamente deixaram-me desnorteada, impedindo-me de raciocinar de vivo juízo o recobramento dos sentidos.

Após desvencilhada das amarras, pelos ajudantes do Jumping, me acalmei um pouco. Mas, não tinha eu mais condições nem de olhar para o céu. Então pedi para minha irmã que me deixasse só. Queria eu refletir um pouco, desanuviar a mente. Estava aborrecida. Após muita relutância por parte da mana consegui ficar a sós comigo mesma. Precisava de um lugar onde pudesse me restabelecer de tão assombroso susto. Queria sair dali, assim como a escuridão tem urgência em fugir da luz. A intenção era me encontrar com Deus em qualquer de suas formas e onde quer que estivesse.

     Andei um tanto desorientada pelas praias, fui até o Mercado Público Municipal ver um pouco do artesanato local, passei pela Praça XV de Novembro, onde fica o Museu Vitor Meirelles, o Museu Cruz e Souza. Tomei um táxi. Já era meio da tarde e mais uma grande tempestade se anunciava. Pesadas nuvens estavam formadas. Pedi para o taxista me levar para a ilha, desci numa pracinha. Girei o olhar em torno. Era o que me faltava, depois de viver as aflições no ar, agora morrer afogada numa enchente. A pesada chuva se precipitava. Corri para me amparar sob o toldo de um quiosque; esbarrando em um rapaz também já todo encharcado de chuva, deixando-me toda sem jeito, quando certo desespero tomou conta de mim ao tentar me desculpar com as palavras um tanto atabalhoadas.

— Chuvinha chata, hem? – disse-me ele, aproximando-se de mim, fazendo-se gentil.

Que grata surpresa, era um pernambucano, logo percebi pelo sotaque.

— Pois é… O dia estava tão bom. Agora essa tempestade. Bem na hora de ir embora. – disse eu tentando ser simpática.

— Bom, pra mim o dia só ficou bonito agora. – disse ele todo sem jeito também.

     Só nesse instante percebi sua fala de fato! Então o olhei fixamente, cruzei os braços, e num semblante de falso espanto indaguei:

— Ops! Você também é pernambucano? 

— Sim, sou de Recife, algum mal nisso?

Por um instante meu sangue congelou nas veias ao ouvir aquela melodiosa voz de meio espanto e meio engraçada. Sorri e disse:

— Não, claro que não... Ei, eu também sou de Recife.

— Deu pra perceber. – disse ele mais uma vez demonstrando toda sua graça.

Ah, se aqueles fótons soubessem a fortuna que acabara de transportar. Ao atravessarem as nuvens trazendo-me você. E dar-me a chance de ver esse rosto pela primeira vez e descobrir que, querendo ou não, irei amá-lo pelo resto  de minha vida.  E todo esse bendito universo fez sentido ao menos uma vez neste dia tão especial. Confabulei comigo mesma. E indaguei, com certa lubricidade.

     — Deu é?

     Passamos às apresentações, conversamos sobre as coisas bobas que os casais que se descobrem apaixonados repentinos conversam, demos risadas encharcadas de chuva e dopamina; xingamos os motoristas dos carros que jogavam água em nossos pés e os que não jogavam também. Tudo estava encantadoramente perfeito. Quando lhe perguntei:

— E você, o que faz da vida e por essa outra banda do Brasil, numa véspera de natal, além de abordar moças desconhecidas com cantadas de adolescentes, é lógico!

     A princípio ele hesitou envergonhado, pela minha indiscrição sobre suas intenções, e como quem não está com intenção de falar seriamente.  Por fim, soltou esta fala repentinamente tentando ser mais engraçado do que já estava sendo.

     — Eu sou um Super-herói!  

— Super-herói!... – exclamei gargalhando. – Tá tirando onda com a minha cara?

— Não, não estou, não – riu ele também, fazendo-se parecer que estava mesmo tirando onda comigo.

— Está bem, e quais são seus poderes? Você voa, tem super força e tal? – perguntei, com o espírito de quem entra na brincadeira.

— Isso mesmo, eu voo, acabei de voar! Saltei do Bungee Jumping!

— Não acredito, eu também!

— Olha, tem um boteco logo ali no largo e essa chuva não está com jeito de que vai passar tão já. A gente pode ir até lá comer uns Pastéis de Siri, que tal? Daí eu te explico tudo com detalhes, sobre meus poderes. – convidou-me ele.

     E eu já percebendo suas intenções, que para minha alegria era minha também.

Após uns tantos pastéis de berbigão e siri, muitas conversas sobre nossos desesperos e vexames no Bungee Jumping, e mais tantas outras engraçadas, abri meu coração como jamais havia feito; com a urgência daquelas que finalmente encontram o amor e desejam a eternidade, mas sabem que o tempo é matéria-prima escassa. – quando Túlio secou a boca no guardanapo, levantou-se; sentou-se ao meu lado e disse:

— Júlia, feche os olhos!

E me deu o beijo mais doce de todo esse mundo.

     A exemplo de Kafka, eu até me inclino a certos exageros. Mas o que é uma mulher apaixonada senão propensa aos excessos? A chuva, do jeito que veio se foi em forma de furacão; pairou lá por cima, ficou para depois das nuvens. E a suave brisa instalou-se em mim cantando versos solenes. Abraçados e, aos beijos, passeamos mais um pouco, bebemos água de uma bica rupestre. Ao passarmos de volta pela praça um homem tocava lindamente seu saxofone azul. E como duas crianças alegres dançamos o Foxtrote. E a noite continuou assim.

A meia-noite, da sacada do hotel, assistimos o pipocar dos fogos no céu da noite de Natal.


Conto escrito por
Paulo Luís Ferreira

Produção
Bruno Olsen
Cristina Ravela


Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.


REALIZAÇÃO



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