2x18 - Um Sonho de Natal
de Edih Longo
Era a quinta vez que ia ao portão.
Nem meu pai. Nem meu tio. Nem minha avó. O meu tio tinha uma imaginação e tanto
para comprar os presentes. Era meu ídolo. Nunca dava roupa. Sempre brinquedos
criativos ou bons livros ilustrados. Nós moramos em Campinas. Papai tinha ido buscá-los na
rodoviária vindos de São Paulo.
Fui para meu lugar preferido. É lá
onde cultivo segredos e colho minhas verdades: uma casinha feita numa pequena
clareira que estava linda e organizada como sempre. Eu a escondia entre vários
galhos para proteger a minha intimidade das investidas intempestivas de meu
irmão. Ficava lá dentro lendo ou, simplesmente, inventando histórias e
escrevendo. Tinha vários amigos de nacionalidades diferentes. Todos feitos de
pedrinhas e durepox, ricamente pintados e caracterizados por mim.
Eu os criei porque sempre discordei
da história da torre de Babel e, por que tanta diferença também racial? Assim, eu
os inventei com deficiências e os incitava a fazer coisas que eu gostaria de
fazer; mas, enquanto estou sob a guarda de meus pais, não tenho a mínima
condição financeira. Um dia, trabalharei e farei tudo o que tenho vontade.
Shisue, a japonesa gaga que, não
podendo fazer Teatro, praticava judô e karatê. O Jonathan, um pianista inglês,
cuja maior qualidade era a polidez e as observações com uma leve ironia
britânica. Era vesgo e usava grossas lentes. Igor era um russo que, por ser
perneta (o durepox tinha acabado) e não poder dançar, ficava horas assistindo aos
filmes e documentários sobre o Baryshnikov.
Francesca era uma italianinha que falava
muito com as mãos e tinha quatro braços (acho que o durepox acabou de tantos
dedinhos que tive que fazer). Ela adorava viajar e como era muito pobre,
contentava-se em olhar para um Globo e imaginar os lugares onde seus dedos
paravam.
Aí, os dedos brigavam entre si, pois
eram vinte e quase sempre os indicadores, que eram quatro, paravam em lugares
diferentes. Então, havia uma reunião para concluírem para qual lugar ela viajaria.
Olhei pela janelinha que tinha feito
cortando algumas folhagens para fugir das chineladas da mamãe quando, como
sempre, atrasava-me para o jantar. Ninguém à vista e, pelo jeito, nem a prazo.
A primeira lágrima pipocou, ardendo a retina. Limpei-a com raiva.
─ Disse-me que daria certo, não foi?
Um lindo cachorrinho branco pulou da
gravura de meu livro favorito e enxugou mais uma lágrima:
─ No es medionoche. Tengo uma buena
noticia. Ella quiere hablar contigo.
Pulei de excitação. Um misto de
alegria e medo. Há meses, mudara-se para a casa da colina uma bruxa. Chegou
numa vassoura elétrica e passou tão rápido por mim que a única coisa que pude
ver foi a protuberância na ponta do nariz. Acho que só voava à noite.
Sempre que eu passava pela rua que
dava fundos para a janela da cozinha, eu via uma cestinha com mantimentos do
supermercado na portinhola. Ela rapidamente pegava a cestinha. Parecia que
tinha medo de ser vista. Devia ser horrorosa coitada com aquela protuberância
toda e pelo tamanho da vassoura, devia ser obesa.
Macabricho - nome fictício que lhe
dei - uma mistura de macaco, com cabra e bicho, era muito alta. Devia ter uns
dois metros. Acho que só estendia os braços para fora da janela e já alcançava
a horta. Nunca a vi do lado de fora da casa. Ela parecia perceber que a
bisbilhotava, pois fechava a cortininha xadrez em preto e vermelho que dava
mais um ar de mistério à casa.
─ Javier, tem certeza que ela quer
falar comigo?
─ Al igual que dos más dos es igual
a cuatro.
─ Já disse que não admito que nenhum
de vocês fale comigo nas suas línguas. Além de ser falta de educação para com
os nossos leitores, eu não sei falar outras línguas e só entendo vocês porque
eu os criei, entenderam?
Bem, fui para casa. Tomei um belo banho e pus
o meu melhor vestido. Perfumei-me de água de cheiro. Não estava com medo. A
curiosidade em mim faz com que tome certas atitudes que até eu duvido.
Enquanto esperava alguém abrir a
porta, dei uma olhada no jardim. Incrível, parecia um morto que tinha voltado
do além. Superflorido e bem cuidado. Do lado direito da casa, dava para ver uma
horta simetricamente bem plantada com as verduras já boas para o uso. Levei o
maior susto quanto senti a pressão delicada de uma mão em meu ombro.
─Pois não?
Na minha frente estava a mulher mais
linda que já vi. Nem as que aparecem nas revistas de modas eram tão refinadas e
elegantes. Usava roupas clássicas em tons azuis coordenados que combinam
perfeitamente com o azul penetrante de seus olhos.
Nos pés, um mocassim branco que
combinava com o colar de duas voltas de pérolas no pescoço delgado e com o anel
também de pérolas na mão fina e pequena. Ao soltar a mão que ela me estendera,
senti uma sensação prazerosa de aconchego.
A sala de estar era bem arrumada e
decorada. Na mesa central um vaso com flores recém-colhidas deixava no ar um
cheiro de asseio. Embaixo de uma árvore de Natal em pinheiro natural, vários
pacotes de presentes. Meus olhos brilharam.
Ela desligou o pisca-pisca da árvore
e acendeu a luz. Levei o maior susto. Pauline em carne e osso estava diante de
mim. Ela é francesa, daí a elegância no vestir e andar. Sumiu de minha casa de
repente.
─ Como você demorou!
─ Porque não me procurou mais cedo?
Onde andou? O que aconteceu?
─Calma, mon chèri. Seu irmão quando
fugiu de você deixou-me cair no caramanchão do quintal e, no primeiro temporal
que teve, fui transportada para cá pelas águas.
Ela foi a minha primeira criação com
pedrinhas e durepox e me foi arrebatada pelo meu irmão do meu outro
esconderijo. Desde aquela época, nós apenas nos suportamos, apesar de nos
amarmos.
─ Parece triste. Hoje é Natal.
Sempre está alegre nesta época. O que houve?
─ Não reconheci a minha própria
criação. Estou me sentindo péssima. Fiquei dias observando você da janela da
cozinha e parecia que era um monstro. Como o medo deforma a realidade das
coisas! E você sempre foi a mais querida, pois foi a primeira.
Sempre tive consciência que meus
pais eram simples operários. Éramos muito felizes, apesar das necessidades. O
Natal do ano passado, todos se cotizaram para comprar o meu computador. Quase
desmaiei de tanta felicidade. Foi um presente só, mas que valeu por todos. Por
isso, acho que este ano não vou ganhar nada, mas queria qualquer coisa nem que
fosse uma bolinha de gude. Parece que todos me esqueceram.
Noutras ocasiões, neste horário, nós
já estávamos ceando e só esperando para os sinos da Igreja nos anunciar que podíamos
abrir os presentes. Quando levantei a cabeça, ela não estava mais na sala. As
luzes começaram a tremular, apagando devagar.
Em todas as paredes, enormes tochas
estavam acesas, dando um encanto mágico ao lugar. A mesa estava posta para doze
pessoas. No centro uma enorme bandeja cheia de frutas. Nas cabeceiras da mesa,
ao invés das cadeiras, havia duas cascatas com todo tipo de guloseimas. Havia
também dois castiçais, cada qual com doze velas acesas.
De repente, ouvi passos que desciam
a escada que dá para os quartos. Senti um calafrio. Vozes começaram a cantar
baixinho músicas natalinas e, gradativamente, foram aumentando. Fechei os
olhos, rezando baixinho. Pauline parecia de cera sob o reflexo das luzes, seus
olhos azuis pareciam vermelhos e, agora daria tudo para estar em minha casa.
Tentei gritar, mas parecia que uma mão de aço apertava a
minha garganta. Fechei os olhos com tanta força que senti as pálpebras querendo
se partir. Estremeci quando senti um beijo em meu rosto.
─Surpresa!
Abri os olhos e a luz foi acesa. Papai
se vestia como papai Noel, mas era tudo preto ao invés de vermelho. Ele não
suportava o vermelho. Não tinha nenhum saco nas costas, como de costume. Segui
o seu olhar sorridente e ele apontou com a cabeça a árvore de natal.
Fui correndo à sala. Minha mãe segurava uma foto com o
piano que ganharia. Meu irmão me deu um atabaque. Minha avó exibia com orgulho
o vestido que fez para meu próximo aniversário que será em janeiro e meu ídolo
maior, meu tio querido, entregou-me o cavaquinho e o tamborim que há muito eu
desejava. Já podia montar minha banda.
─Mas, por que tantos lugares à mesa, Pauline?
─Surpresa número dois!
Todos meus amigos entraram gritando e quase me sufocando de
tantos beijos e abraços. Jonathan, com seu piano a tiracolo que apareceu como
um passo de mágica, começou a tocar a “Ave Maria do morro”, música que
adoro. Francesca, Igor e Shisue, entraram
na farra. Quando levantamos os copos para fazermos o brinde à meia noite, um
barulho irrompeu na sala, seguido de um grito de dor:
─Me ajudem!
Todos corremos e ficamos parados vendo um homem enorme, com
longas barbas brancas e um saco enorme nas costas, acabando de sair da lareira.
Vocês podem pensar que estou mentindo, mas ele era o Papai Noel em literalmente
carne. Devia pesar uns duzentos quilos. Não é à toa que ficou entalado na
chaminé. Sorriu, aproximou-se de papai e lhe entregou um papel. Agora a mesa
estava completa. Papai leu, pediu os óculos para mamãe, leu de novo e pulando
como criança, só gritava:
─A casa agora é nossa!
Afinal, era uma casa de verdade. Isso devia ter-lhe custado
os olhos da cara, coitado! Por isso, só trouxe aquele presente. Sentamo-nos à
mesa, agora com o papai Noel verdadeiro. Quando nos preparávamos novamente para
o brinde, entra o Javier latindo. Ele ficara no sonho, mas minha mãe:
─Acorde, filha, já passa das onze horas. E não se esqueça
de fazer a cama. Temos que buscar o pessoal no Hospital.
Então, fiquei triste. Lembrei-me de que meu pai sofrera um
acidente de carro enquanto trazia meu tio e minha avó para a ceia. Todos estão
bem, mas nosso Natal tinha murchado como flor não regada. E, fiquei mais triste
ainda, pelo Papai Noel não existir, nossa casa também não e por ter perdido
todas as minhas crenças infantis. Que pena, meus amiguinhos de pedra e durepox
nunca tiveram vida. Só encantos, enquanto durarem as minhas lembranças.
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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