2x19 - Bem-vindo (Penúltimo Episódio)
de Lígia Diniz Donega
— CVV, boa tarde.
—
— Alô. CVV, em que posso ajudar?
—
— Alô. Alguém na linha?
Era meu primeiro ano de voluntariado no CVV,
aproximadamente quinze e trinta do dia vinte e três de dezembro. Alguns minutos
aguardei para que a pessoa do lado de lá começasse a falar. Nem sempre quem
liga consegue desabafar logo de cara. Alguns, primeiro, choram copiosamente até
se sentirem capazes de se soltarem. Aliviar a desgraça humana, é para isso que
nós voluntários estávamos ali, ainda mais numa época do ano onde as ligações
aumentam uns vinte por cento. Natal para alguns é uma época difícil onde o
sentimento de solidão e exclusão intensifica-se.
Após instantes de hesitação ele apresentou-se. Uma das
normas de conduta é mantermos o anonimato, quem liga só diz seu nome se quiser.
Matheus, um jovem com uma voz muito grossa e bonita, disse-me que o natal
passou a ser um problema depois da morte prematura e inesperada da mãe, sua única
referência familiar. Tinha pai, mas daqueles que nunca quis participar da vida
do filho. Morando bem longe, precisou ir até ele para se conhecerem e, mesmo
assim, não conseguiu desenvolver nenhum tipo de laço afetivo com o homem frio,
materialista e egoísta. Quantas histórias como essa! A mãe que, sem outra
opção, desempenha o papel de pai também. Matheus era mais um solitário perdido
no mundo, sem família e sofrendo numa época onde a maioria está alegre, isso
era o pior de tudo.
Segui o protocolo do CVV. Ouvia, acolhia e respeitava sua
dor. Não podia dar conselhos, muito menos envolver-me com seu drama. O CVV
serve como um eco para a pessoa se ouvir e ao desabafar aliviar aquele
sofrimento agudo do momento. Mas o rapaz precisava mais do que um ouvido para
escutá-lo. Conforme ia falando eu tinha esperança de que se sentisse melhor, no
entanto, com mais de trinta minutos de ligação ainda estava muito deprimido e
eu começava a ter uma intuição ruim quanto ao que ele pudesse fazer em seu
lamentável natal solitário.
E lá estava eu com
um rapaz desesperado, morrendo de medo da solidão, totalmente desamparado, sem
que eu pudesse fazer nada além de ouvi-lo e dizer “eu te entendo”. Matheus não
precisava ser compreendido, sua dor era legítima, seu sofrimento concreto.
Lógico que eu já tinha atendido uma infinidade de pessoas com o problema da
solidão. Há cada vez mais gente morando sozinha e apostando nas relações
virtuais, relações que nos colocam em contato com muita gente mas sem
profundidade. Afligi-me mais ainda quando ele deu sinal de que ia desligar o
telefone. Pensei, “não posso deixá-lo assim.”
— Venha passar o natal comigo.
Pronto! Falei sem pensar duas vezes. Ele ficou mudo.
Aguardei com o coração aos pulos.
— Ouviu, Matheus? Estou te convidando para passar o natal
em minha casa com minha família.
Passei por cima de todas as recomendações e treinamento
do CVV, acabava de contrariar todos os preceitos da organização. Entretanto, não
olhei para trás, algo nele e na sua história me fez fazer aquilo, é como se eu
já o conhecesse. Em minha mente apenas uma coisa interessava-me: não deixar o
rapaz sozinho. Ele demorou a falar e quando fez, o tom de voz já era outro,
mais vívido.
— Mas a gente nem se conhece, nem sei seu nome. O que sua
família vai achar de um estranho no meio deles? Vou tirar a liberdade de vocês.
— Com minha família eu me entendo. Então, que resposta
você me dá?
Mais algumas conjecturas, perguntas, dúvidas e ele acabou
aceitando. Passei o endereço e meu telefone.
— Não precisa levar nada. Apenas quero que vá de coração
aberto. Ah, e meu nome é Olga.
Ao desligar, a dúvida já doía na consciência. Que louca
eu! Inconcebível o que fiz. Envolvi-me, de fato, com a pessoa que estava
atendendo, pior ainda, convidei-o para ir a minha casa. Oras, que me importava
se não o conhecia. Era natal, tempo de união, e o garoto precisava de mim, de
todos. Naquela tarde fui para casa pensando em como falar do meu convidado
especial para meu marido e filhos. Contava com a compreensão da minha turma.
Penso que todos somos pessoas comuns
caminhando pela rua que Deus pôs na nossa frente. Sejamos ricos ou pobres ou
alguma coisa no meio, todos somos desabrigados neste mundo. Estamos só
percorrendo o caminho de volta ao lar. Quando Matheus cruzou a porta de entrada
de minha casa tive um sobressalto. Enxerguei entrando com ele todas aquelas
pessoas que atendi naquele meu primeiro ano de voluntariado: a idosa que ligou
só para dizer boa noite; o homem que queria mostrar as músicas que compôs; o
doente terminal que ligou do hospital para compartilhar o momento; a mulher
contente só para contar do bolo que fez e deu certo pela primeira vez. Vi todos
estes desabrigados como eu, como nós, adentrando meu lar para passar o natal
conosco. Contudo, o que mais me impressionou foi a semelhança dele com meu
irmão Aurélio, parecia ele estar voltando para nós depois de quinze anos
falecido, só que ainda jovem.
— Me desculpa a ousadia de ter trazido o violão, não sei
se vocês gostam — Matheus falou timidamente.
Até isso era igual ao Aurélio! Que benção! Fiz um esforço
enorme para não me derramar em lágrimas na frente dele. A noite era de festa e
eu queria muito que ele se sentisse bem conosco.
— Seja muito bem vindo, Matheus — respondi.
E que rapaz bonito! Baixa estatura, magrinho, barba
espessa, cabelo bem escuro, nariz delicado, lábios grossos, olhos grandes e bondosos,
embora tristes, realmente, muito parecido com Aurélio. Educado e agradável,
rapidamente travou conversa com Júlio e os meninos. De longe fiquei
observando-o, via alguns trejeitos semelhantes aos de meu irmão, a risada
contida, o olhar atento, as mãos...meu irmão tinha mãos lindas. A morte, muitas
vezes, não é a história de quem vai e sim de quem fica. Matheus era a prova disto.
História de dor, mas, principalmente, de superação. Aquele natal traria a
esperança e luz de que ele tanto necessitava, tinha fé nisto.
Ao término da ceia, que transcorreu perfeita, pedi que
meu marido e os meninos ajeitassem as comidas, eu precisava de um tempo a sós
com Matheus.
— Olguinha, viu como ele se parece com seu irmão? Mas não
vá dizer nada, hãm! — Júlio me precaveu.
— Claro que não — respondi.
Peguei Matheus pelo braço, fomos para a varanda e nos
acomodamos nos bancos. Perguntei-lhe:
— O que achou da minha atitude em convidá-lo?
Revirou os grandes olhos para o céu:
— Achei bem inusitado — e sorriu. — Isso pode?
— Claro que não! — e caímos na gargalhada. — Sou a pior
voluntária de lá. Sabe aquela que encasqueta de fazer o que não pode?
Rimos mais um tanto.
— É óbvio que vou me desligar do CVV. Depois disto não
posso continuar lá.
Ele me olhou meio apreensivo.
— Não é sua culpa não, fique tranquilo. Meu marido quando
soube que eu ia trabalhar lá logo disse que não daria certo. Ele me conhece
direitinho. Eu teimei.
— Mas você não gosta?
— Ah, sim, gosto. Mas essa coisa de ficar só ouvindo não
é pra mim. Tem horas que fico louca para dar uns conselhos ou até uma boa
sacudida na pessoa e não posso. Além disso é um trabalho tão solitário quanto
aqueles que ligam. É preciso muito equilíbrio emocional, pra mim é difícil não
me envolver. Mas é um trabalho lindo e importante, ajudam muitas pessoas.
— Falo por mim. Você me salvou — disse ele com tristeza e
olhando para o chão, ou para seu imenso buraco sob os pés.
Depois continuou.
— Obrigado, mesmo, de coração.
— Espero que tenha se sentido bem conosco.
— Sim, claro, fui muito bem recebido, não tem como não
gostar.
Era óbvio que
pensava na mãe e fazia um tremendo esforço para não se afundar. Ele precisava
desesperadamente de amor. Eu falei:
— Sabe qual o maior obstáculo do amor?
Pensou por um instante.
— O ódio?
— Não. O medo. E não existe criatura neste mundo que não
sinta medo.
Pausei pensando com cuidado nas palavras.
— O medo constrói paredes, te estrangula devagar,
sutilmente, até que um dia não há mais o que ganhar ou perder. Quantas
oportunidades perdemos em nome do medo. Matheus, hoje não foi só você que
ganhou com nossa companhia, nós também ganhamos e isto foi possível porque você
transpôs o medo quando pegou o telefone e, depois, quando aceitou estar aqui
agora. Sua ligação foi um pedido de socorro. Meu convite foi a resposta a sua
coragem. Você deu o salto, mesmo com medo.
Ele pensou um pouco e disse:
— Pelo que parece você não teve medo de me convidar. Nem
me conhecia! Eu poderia ser o oposto do que sou.
— Poderia mesmo, mas eu boto fé nas minhas intuições, algo
na sua voz me tocou, não sei explicar. Você vai ver, este é só o primeiro dia de
nossa amizade. E também é natal, a época mais linda do ano! Luz, renascimento,
fraternidade, esperança...esperança, sobretudo. Já fez seu pedido?
— Que?
— Pedidos mentalizados no natal são especiais. Você tem
que confiar. Vamos, experimente.
— Agora?
— Agora.
Matheus fecha os olhos bem apertados e sorri enquanto
mentaliza.
Permanecemos mais um tempo conversando, ele falando na
mãe e da união entre eles; do quanto esperou que ela se curasse; seus projetos
profissionais, estava começando numa outra empresa, algo ligado à arquitetura.
Como fiquei feliz em ver que não tinha errado em convidá-lo! Até que ele
sugere:
— Vamos cantar?
Bruno Olsen
Cristina Ravela
Esta é uma obra de ficção virtual sem fins lucrativos. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real terá sido mera coincidência.
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