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CENA 1 - ESCRITÓRIO - INTERIOR - DIA
BELIT, mulher de 45 anos, está em uma videochamada no celular. Ela está usando roupa social.
BELIT
Vocês o quê? Vocês dois são grupo de risco, no que estão pensando? Vocês não voltaram a fumar, né? Agora eu tô ocupada, tenho uma audiência daqui a pouco, mas depois ligo para vocês. Não façam nada antes de eu falar com vocês, tá? Beijo.
Desliga.
CENA 2 - CASA DE OLGA E TICO - INTERIOR - DIA
OLGA e TICO, idosos com cerca de 70 anos, estão de pé na sala, guardando o celular após a ligação. Há um calendário na parede, que marca o mês de setembro de 2020.
TICO
Quando eu era moleque, não podia responder meus pais. Agora, que tô velho, não posso responder minha filha. Tô bem arrumado.
OLGA
E você viu ela perguntando se a gente voltou a fumar?
TICO
Se eu falo do brownie, ela ainda briga por causa da minha diabetes…
OLGA
O que fazemos agora? Mantemos o plano?
TICO
Claro que sim. Só coloca o telefone no jeito avião, pra ela não ligar pra gente.
OLGA
Mas se ela não conseguir falar com a gente, vai ficar preocupada e vir até aqui.
TICO
Pra cá ela não vem nem em época normal, imagina agora. Se ela ficar preocupada, que nos processe, é só isso que ela sabe fazer mesmo... Vai preparando um sanduichinho pra gente que já vou levar as coisas pro Marcuse e dar a partida pra aquecer o motor.
TICO sai da sala, enquanto OLGA espera um pouco, olhando o celular, até que deixa o recinto também.
CENA 3 - GARAGEM - INTERIOR - DIA
TICO coloca algumas malas dentro de Marcuse, sua velha Kombi azul, toda enfeitada com adesivos brilhantes e com os bancos coloridos. Coloca a mão nas costas doloridas pelo breve esforço de ajeitar as malas e vai em direção à porta do motorista. Acaricia o parabrisas com carinho, sorri, abre a porta e dá a partida. A kombi não liga.
TiCO
Mas que merda é essa agora?
OLGA entra na garagem com uma cesta de piquenique na hora que TICO está praguejando.
OLGA
O que aconteceu?
TICO
Que susto! Quer me matar? Foi o Marcuse. Ele não deu partida.
OLGA
Será que ele não está sem gasolina?
TICO
Mas como que está sem gasolina se eu enchi antes de ontem?
OLGA
Então ele quebrou?
TICO
O Marcuse não quebra, só deve estar no meio de uma pequena recusa… E eu mexi nele ontem, pra deixar nos trinques.
OLGA
Acho que não deu muito certo.
TICO
Só me dá uns minutinhos que já resolvo isso. Com certeza não é nada demais, eu e o Marcuse temos história, ele não ia me deixar na mão.
OLGA
Tá bom. Enquanto isso, vou regar as plantas e ajeitar umas coisinhas.
OLGA sai da garagem, enquanto TICO abre o carro para ver o motor e coça a cabeça, confuso.
CENA 4 - GARAGEM - INTERIOR - NOITE
TICO se debruça sobre a Kombi, mexendo no motor com uma chave de rosca. OLGA está sentada numa cadeira dobrável de praia, fumando um baseado.
TICO
Ufa, terminei!
OLGA
Que bom que só levaram uns minutinhos.
TICO
Nem foi tanto assim: se levasse num mecânico, demoraria uma semana pra arrumar. E seria caro.
OLGA
Mas, pelo menos, não quebraria de novo na semana seguinte.
TICO
Comigo arrumando, ele não vai quebrar nem no ano seguinte.
OLGA
E, se quebrar, nenhum de nós dois vai lembrar que você disse isso mesmo. Mas e agora? Deixamos o plano pra amanhã?
TICO
Que pra amanhã o quê! Por acaso estamos velhos? Vamos agora, ainda temos muito tempo. A noite é uma criança.
OLGA
E não avisamos a Belit mesmo?
TICO
Tá com Alzheimer, mulher? A gente a avisou hoje cedo.
OLGA
Mas ela disse que era pra gente falar com ela depois da audiência…
TICO
Besteira.
OLGA
Tá bom, então vamos. Se você acha que está bem para dirigir, vamos lá. Só não esquece de pôr os óculos.
OLGA dobra sua cadeira e a coloca na Kombi. Senta no banco do carona e TICO se ajeita e dá a partida no automóvel. O portão elétrico da garagem se abre e eles saem dirigindo.
CENA 5 - AVENIDA - EXTERNO - NOITE
Os dois estão dirigindo pela avenida deserta, ouvindo música e conversando. Quando se aproximam do limite do município, são parados por um POLICIAL, cujo carro está estacionado bem no meio da avenida.
CENA 6 - KOMBI - INTERIOR - NOITE
O POLICIAL, usando máscara protetora, se aproxima da Kombi e TICO desliga o rádio e abre o vidro do veículo.
POLICIAL
Boa noite, senhores.
TICO
Boa noite, seu guarda. Algum problema? Eu não estava ultrapassando nenhum carro pelo acostamento, né?
POLICIAL
Não, senhor, mas o senhor não pode seguir viagem por aqui.
TICO
Ué, e por quê não? As ruas continuam sendo públicas, ou deram um jeito de privatizar elas?
POLICIAL
A rua é pública, mas o município decretou lockdown. Ninguém pode entrar ou sair daqui depois que escurece até o amanhecer. O tráfego só será restabelecido pelas seis da manhã.
OLGA
Puxa, mas o que faremos agora?
POLICIAL
Para onde os senhores estavam indo?
OLGA
Nós vamos fazer uma viagem pelo país, para comemorar nosso aniversário de quarenta e nove anos de casados.
POLICIAL
Parabéns pela data, mas vocês só poderão seguir pela avenida amanhã de manhã. Hoje, podem procurar um hotel, há alguns que estão funcionando, apesar das limitações. Mas eu recomendo que não façam a viagem por enquanto, que está muito perigoso. Esperem as coisas se acalmarem e…
TICO
Nossa filha disse a mesma coisa, mas ela não percebe que quarenta e nove anos de casado só acontece uma vez e que nós não estamos ficando mais novos. Se a gente não for agora, não vai ser um vírus que vai nos matar, mas alguma das muitas doenças de velho. Melhor aproveitar enquanto a gente ainda pode… boa noite, seu guarda.
TICO fecha o vidro da kombi antes que o POLICIAL diga algo e dá a ré. O POLICIAL só acena, voltando ao seu veículo.
CENA 7 - KOMBI - INTERIOR - NOITE
TICO dirige o carro. OLGA fala com ele.
OLGA
Poxa, que coisa! E agora, voltamos para casa?
TICO
Por quê? Só porque um guardinha não deixa a gente seguir viagem? Na minha época, a gente lutava contra o sistema, não obedecia cegamente. Aliás, você era uma das primeiras a lutar.
OLGA
Mas o que você propõe? Dar meia volta, acelerar e atropelar o pobre coitado?
TICO
Não, mas isso não quer dizer que temos de ir pra casa. Podemos só parar em algum canto tranquilo e dormir até a hora de abrirem a cidade de novo. Não é como se não fôssemos fazer isso durante a viagem.
OLGA
Tá legal. Onde vamos parar?
TICO
Já, já a gente acha um lugar bacana.
Seguem dirigindo pela avenida.
CENA 8 - AVENIDA - EXTERNO - NOITE
TICO e OLGA pararam a Kombi numa praça deserta e estão abrindo espaço na parte de trás do veículo, para dormirem nela. Há boa iluminação pública e o local está bem limpo e arrumado.
TICO
Isso que é vida. Lembra quando esse era o normal pra nós?
OLGA
Se lembro? A Belit nasceu desse jeito.
TICO
Aquela viagem pra Recife foi boa…
Os dois seguem arrumando a kombi.
CENA 9 - AVENIDA - EXTERNO - NOITE
Enquanto estão conversando, TOLEDO, homem branco de 50 anos, se aproxima deles e coloca a mão no ombro de TICO. Ele não está usando máscara.
Toledo
Boa noite.
TICO
Filho da puta! Quase me mata de susto, quer explodir meu coração? Acho que me caguei todo.
OLGA
Ai, Maria! Que susto, moço.
ToLEDO
Desculpem, não quis assustar os senhores. Só vi que estavam parados aqui de noite e vim oferecer ajuda. Tem um monte de nóia aqui por perto, pode ser perigoso para gente de bem ficar sozinha por aí. O carro enguiçou?
TiCO
Essa potranca aqui não enguiça!
OLGA
Nós estamos de viagem, vamos cruzar o país, mas só podemos sair da cidade de manhã, por causa do lockdown. Por isso vamos dormir aqui.
ToLEDO
Aqui fora nesse perigo? Não querem passar a noite lá em casa? Dá pros senhores estacionarem o carro e amanhã seguem viagem.
OLGA
Obrigada, mas a gente prefere ficar por aqui mesmo. A gente mora por perto, mas quisemos a aventura de passar a noite fora.
TOLEDO
Entendo. Só tomem cuidado, porque a rua tá cheia de gente que não presta. E a polícia, em vez de prender esses parasitas, fica impedindo a gente de andar livremente pelo país. Inventam uma gripe em laboratório só pra desestabilizar a economia e deixar tudo fechado.
TICO
Quem que inventou o quê num laboratório?
TOLEDO
Eu tô falando dessa comoção toda por causa de uma gripezinha, nunca vi nada assim. É coisa de quem não quer trabalhar nem deixar os outros trabalharem. É mentalidade de gente pequena.
TICO
Então a pandemia agora é um complô de anões?
TOLEDO
Que anões? O senhor está caçoando de mim?
TICO
Eu não tô caçoando de ninguém, sou só um velho que não sabe de nada. Ainda bem que tem gente que sabe das coisas, ou a gente ia acabar no fundo do poço…
TOLEDO
É como eu digo, se ninguém fizer nada, vamos acabar que nem a Venezuela, tudo por causa desses cumunistas safados.
TICO
A culpa é sempre dos comunistas?
TOLEDO
Por acaso o senhor é comunista?
TICO
Quando eu era jovem, até queria, mas tudo que consegui foi ser bucetista. Os tempos eram outros, sabe? Hoje em dia nem isso consigo, porque a idade bateu. Mas acho que não sou o único, então deixa pra lá.
TOLEDO
Não dá pra deixar pra lá! Tá tudo uma bagunça, os valores estão todos invertidos. Por isso que tá na hora da gente acordar…
TICO
Pra mim, não, que tô velho e não sou coruja. É hora de eu dormir pra seguir viagem de manhã. Se já cumpriu sua cota de sustos e de conversas por hoje, boa noite e até mais ver.
TOLEDO
A gente quer ajudar e é assim que é pago… Ninguém tem salvação nesse país.
TOLEDO sai resmungando e TICO entra na Kombi.
CENA 10 - KOMBI - INTERNO - NOITE
OLGA deita no banco, acende um cigarro, dá um trago e o passa para TICO.
OLGA
Você não acha que foi um pouco grosso com aquele rapaz?
TICO
Vai me dizer que você foi com a cara dele?
OLGA
Eu não, mas ele só queria ajudar. Do jeito estranho dele, mas era ajudar…
TICO
Ajudar! Essa é boa. O cara era pinel, parecia esquizofrênico. Você viu que eu estava tirando uma com a cara dele e ele nem percebia, continuava com as bobagens sem nexo que tava falando? Acho que ele nem escutava o que eu tava dizendo… Já não tenho mais paciência com essas coisas.
OLGA
Você nunca teve paciência.
TICO
Mas agora tenho ainda menos. Antes, ainda acreditava que dava para lutar, argumentar e melhorar alguma coisa. Agora, não acho que isso adiante e nem que temos tempo para alguma luta… Quero uma viagem só nossa, sem ter de lidar com um cretino a cada esquina.
OLGA
Para com isso de não termos tempo. Nós já conversamos sobre isso, há boas chances de tratamento e eu quero tentar todas as opções. Assim que a gente voltar, eu recomeço. Deu certo da última vez, lembra?
TICO
Mas agora você não é mais uma menina.
OLGA
Eu sinto como se fosse. Uma menina de tetas caídas.
TICO
Você sabe que eu tenho um pouco de medo.
OLGA
Vai dar tudo certo, só tenha calma.
TICO
Tá certo. É só o que dá pra fazer.
TICO entrega o cigarro para OLGA, esfrega os olhos e se vira para dormir. Ela dá mais alguns tragos e depois o apaga.
CENA 11 - AVENIDA - EXTERNO - MANHÃ
Os dois estão na Kombi, que segue viagem pela avenida relativamente deserta. Pegam uma rodovia com poucos carros na estrada e só um ou outro caminhão rodando.
CENA 12 - POSTO DE GASOLINA - EXTERNO - TARDE
TICO paga o frentista, que acabou de abastecer a kombi. OLGA está olhando o celular. Ao fundo, três jovens com cerca de 25 anos cada, RENATO, MARCELO e LUANA, estão mexendo no celular e gesticulando. Eles usam máscaras protetoras.
OLGA
A Belit mandou um monte de mensagem, falando que está tentando falar com a gente.
TICO
Você trouxe essa geringonça pra cá?
OLGA
Eu vou falar que o celular estava sem bateria e pedir pra ela ligar de noite. Assim ela não fica preocupada
TICO
Ela vai encher nosso saco.
OLGA
Eu não vou atender quando ela ligar. Depois, falo que estava vendo novela ou dormindo… Olha, Tico, acho que aquele pessoal quer carona.
TICO
Tomara que eles consigam.
OLGA
você não vai oferecer?
TICO
Eu porquê?
OLGA
Porque nós sempre fizemos isso. E quando tínhamos a idade deles, cansamos de pegar carona também.
TICO
Mas isso era numa outra época. Você não ouviu o bastião da moralidade falando dos nóias ontem de noite? Esses moleques vão querer me estuprar.
OLGA
Para de ser xarope e ofereça carona pra eles, se não, você que vai pedir carona enquanto eu sigo viagem com o Marcuse.
TICO
Só espero que não seja mais gente maluca pra atrapalhar a viagem.
TICO dá partida na kombi e vai até os três jovens.
CENA 13 - POSTO DE GASOLINA - EXTERNO - TARDE
TICO para a kombi na frente dos jovens, que estão mexendo no celular, gesticulando e olhando para a rodovia.
TICO
Cês tão pedindo carona?
Renato
Você é Uber?
TICO
Não, eu sou o Tico e essa é minha esposa Olga. Vocês tão indo pra onde?
Luana
Pro Rio.
TICO
A gente não vai pra lá, mas te deixamos perto de Resende.
LUANA
Perfeito! Obrigada! Nenhum Uber estava passando por aqui.
Os três jovens dão a volta e entram pela porta lateral da kombi. O veículo segue viagem.
CENA 14 - KOMBI - INTERNO - TARDE
Os três estão comendo brownies de maconha com TICO, que continua dirigindo, e OLGA, que está virada em seu banco para conversar com eles.
OLGA
Quando eu vi vocês paradinhos lá, deu uma nostalgia da época que era mais jovem… Falei pro Tico dar uma carona, porque é tão gostoso ajudar os outros.
LUANA
A senhora é uma salvadora. Já tava com medo de a gente passar a noite naquele posto, porque não conseguíamos nenhum carro pra nos buscar.
OLGA
Eu bem sei o que é passar um sufoco na estrada. Mas agora está tudo certo, vocês vão pra um lugar mais sossegado e lá arrumam um desses ubers.
Marcelo
Sossegado, sossegado não vai estar, por causa dessa pandemia. Mas ao menos estará um pouco menos deserto do que aqui.
LUANA
Por falar em pandemia, muito louco vocês estarem dirigindo por aqui. Meus pais nem saem de casa, tão morrendo de medo. Cês tão indo pra onde?
OLGA
Nós vamos comemorar nosso aniversário de casamento fazendo uma road trip pelo país, como fazíamos quando éramos mais jovens.
LUANA
Que barato. Sempre quis fazer uma viagem dessas. Queria mochilar pela América Latina.
OLGA
Aproveita enquanto está jovem e faça isso. E, depois, quando estiver velha, faça de novo, pra ver a diferença.
LUANA
Isso é mó barato. A gente devia aproveitar o momento e fazer isso.
ReNATO
Agora não dá, por causa da pandemia. Só quero aproveitar que a Unifesp suspendeu a aula e tirar um tempo na casa dos pais do Marcelo. Só saio quando essa peste passar.
TICO
Você tá com medo de quê? É um homem ou um rato?
RENATO
Nem um nem outro, que eu sou não-binário.
TICO
E que porra é essa agora?
LUANA
Uma pessoa não-binária é quem não se identifica com um único gênero…
TICO
É quem corta pra todo lado? Então só fala que é meio viado e já era, que ninguém vai ficar julgando, só não precisa dessas frescuras de palavra que ninguém entende.
RENATO
Isso não tem a ver com sexo, tem a ver com identidade.
TICO
Sei. Na minha época, identidade era só RG. De resto, a gente não ficava preso a essas coisas, só ia lá e fazia o que queria.
LUANA
Mas não é só questão do que fazer, envolve também como se portar, como se definir…
TICO
Tá vendo, Olguinha, eles deixam até o sexo chato, é disso que tava falando.
TICO, emburrado, acelera o veículo.
MARCELO
Eita, que corrida.
TICO
Niki Lauda é fichinha perto de mim.
RENATO
Quem?
TICO
Puta que pariu!
A kombi segue pela estrada, veloz. LUANA morde mais um pedaço do brownie e recomeça a conversa.
LuANA
Eu acho mesmo mó barato esse lance de viajar pelo país. Vocês devem ter curtido a vida pra caramba quando eram jovens.
TICO
Sim, antes de ficarmos velhos e fodidos, sem poder curtir mais porra nenhuma.
OLGA
Tico!
TICO
Que foi? Ela que disse que a gente curtia quando era jovem, eu só concordei. Velho é que nem morto: não curte mais nada.
LUANA
Não foi isso! É claro que vocês ainda curtem, só falei sobre terem aproveitado a juventude e tal.
OLGA
Ele sabe disso, só que é um velho rabugento e fica resmungando por tudo. Mas é verdade, a gente curtiu sim. E ainda curte, não mudou muita coisa.
TICO
Só tenho de parar toda hora pra mijar, foi a única mudança.
OLGA
Sabe, eu acho até mais emocionante viajar agora do que quando era mais jovem.
LUANA
Sério? Por quê?
OLGA
Porque quando a gente é jovem não é tão difícil ter uma aventura. Agora, quando a gente fica velho, ter uma aventura realmente significa alguma coisa. Significa que a gente continua vivo, apesar de tudo, e que realmente queremos ter a aventura. É uma escolha nossa, não dos hormônios ou dos amigos.
TICO
Até porque já não temos mais hormônios e os amigos já morreram todos.
OLGA
Sabe, quando a gente fica velho, é como se já não tivesse mais um espaço pra gente no mundo: as ruas são dos adultos produtivos e nosso espaço é num hospital ou num asilo. Sair pra viajar assim é um chute no saco de quem acha que depois de sermos mães e envelhecermos não podemos mais sair de casa e nem essas coisas todas de senso comum.
LUANA
Nossa, isso é muito maneiro. Não sei se é o brownie falando, mas tô super a fim de ser você quando crescer. Tirando a parte do casamento, é claro.
OLGA
Ah, mas se você quiser casar, com certeza encontra coisa melhor. É que eu não era muito criteriosa quando era jovem.
TICO
Pior que não era mesmo.
LUANA
Vocês são engraçados, fico imaginando vocês casados esse tempo todo, um implicando com o outro e levando tudo na boa… Meus pais só brigam, mal falam direito um com o outro.
OLGA
O segredo para um casamento longo é um pouco de maconha: te deixa feliz, acaba com a sua memória e, por isso, te faz esquecer da irritação.
LUANA
Essa é boa! Vocês são muito doidos. Mas é sério, eu não acredito no casamento…
MARCELO
O casamento não existe mais, é uma instituição falida.
OLGA
Olha, Tico, eles falam igualzinho a gente falava quando éramos mais jovens.
MARCELO
Vocês também não acreditavam no casamento?
OLGA
Não.
TICO
Acho que ainda não acreditamos.
LUANA
Então porque casaram?
TICO
Ué, também não acredito em juros, mas se não pagar a dívida, o banco me fode. A gente só foi e casou. Uma coisa é a instituição casamento, outra é a vida real.
LUANA
Mas isso não faz sentido. Porque fazer algo em que não acredita?
TICO
Porque a vida real é mais interessante que uma crença.
RENATO
Mas vocês casaram porque foram obrigados, por causa de filhos ou coisa assim?
OLGA
Não, nós casamos porque queríamos não acreditar no casamento juntinhos.
LUANA
Nossa, isso é muito foda! Tô muito feliz de estar aqui com vocês.
TICO
Deveria estar, já que tá economizando o dinheiro da passagem.
OLGA
E nós estamos felizes de vocês estarem aqui com a gente. É legal ver jovens na estrada pegando carona, em vez de ficarem o tempo todo na frente do celular e do computador. Espero que um dia vocês consigam fazer a viagem pela América Latina que você falou.
A kombi segue dirigindo, veloz, pela rodovia quase deserta.
CENA 15 - CIDADE DE RESENDE - EXTERNO - CREPÚSCULO
Os jovens saem da kombi fumando um baseado e acenando para TICO e OLGA. OLGA retribui, rindo.
CENA 16 - KOMBI - INTERNO - CREPÚSCULO
TICO liga o rádio novamente, rindo. OLGA ainda acena para os jovens.
OLGA
Que meninos encantadores.
TICO
Hoje em dia são todos umas mariquinhas.
OLGA
Tico!
TICO
Que foi? Você ouviu aquilo… viadagem agora é identidade. Tudo é conversinha, ninguém mais quer lutar pra mudar as coisas.
OLGA
Nós lutamos do nosso jeito, eles lutam do jeito deles.
TICO
Tem razão. Eu que tô velho demais para essas coisas. Teve um tempo que a gente se meteria nessa de identidade que nem eles, mas hoje em dia não sei mais… é como se eu tivesse parado e o mundo seguisse em frente. É sério, não entendo mais porra nenhuma disso aqui.
OLGA
É por isso que é bom conhecer esses meninos novos, que vão mostrando como o mundo está. É o melhor jeito de a gente se manter sempre jovem.
TICO
Isso até que é verdade. Mas vamos deixar isso para quando estivermos em casa. Nessa viagem, já tive contato demais com o mundo. Só quero uma boa e velha viagem com minha Olguinha, do jeitinho que tem de ser, sem mais ninguém pra torrar minha paciência.
OLGA
Você está muito ranzinza, deixe disso. Ainda temos muito tempo de viagem para conhecer gente nova.
TICO
Haja saco.
OLGA
Velho ranzinza.
TICO
Você que foi pouco criteriosa na hora de escolher o marido.
OLGA
Se arrependimento matasse…
TICO
Mas até que foi bom, né?
OLGA
Sempre foi e vai continuar sendo. E as partes ruins, eu esqueço com a maconha.
TICO
É, a vida é boa…
TICO sorri, aumenta o som do rádio e pisa no acelerador.
CENA 17 - ESTRADA - EXTERNO - NOITE
A kombi segue dirigindo por uma rua mais ou menos deserta, até sumir de vista.
CORTA PARA uma série de
paisagens, OLGA e TICO vendo a
natureza, dirigindo a
kombi, dormindo.
CENA 18 - KOMBI - INTERNO - MANHÃ
OLGA acorda e vê TICO gemendo e saindo da kombi.
CENA 19 - NATUREZA - EXTERNO - MANHÃ
TICO está respirando com dificuldade e tossindo. OLGA vai até ele e o ampara.
OLGA
Tico, o que tá acontecendo?
TICO
Nada… só um pouco de dor de cabeça e falta de ar, preciso de ar fresco, acho que fumamos demais ontem e ficou tudo abafado na kombi.
OLGA
Tico, você está ardendo em febre. A gente precisa ir ao hospital.
TICO
Fazer o quê? Já falei que estou bem, só preciso de um pouco de ar. Se tiver de ir pro médico, vamos quando a viagem acabar, que ainda temos muito chão pela frente.
OLGA
Não dá para a gente continuar a viagem assim, Tico…
TICO
Está tudo bem. Nós vamos ter uma última viagem, não vai ser uma dorzinha de cabeça de nada que vai me impedir.
OLGA
Que última viagem? Eu já te falei que não vou desistir. Ano que vem, vamos repetir a dose.
TICO
Acho que, pra variar um pouco, poderíamos mochilar pela América Latina, o que acha?
OLGA abraça o marido, que retribui o carinho. FADE OUT.
CENA 20 - CASA DE OLGA E TICO - INTERIOR - DIA
OLGA, careca e na cadeira de rodas, olha uma foto de seu marido. Ela sorri e lágrimas escorrem de seus olhos. No calendário na parede, vemos que está no mês de setembro de 2021.
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