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— Vamos morar nessa casa vazia? — ela me perguntou quando entramos em um terreno no bairro Cidade Nova de Manaus.
— Bom, tivemos que vender uma boa parte das nossas coisas — eu defendi a ideia de morarmos ali — Não é tão confortável como o nosso antigo apartamento na Ponta Negra, mas…
— É que eu fico com receio de ter que andar nessa casa — disse Marjorie — Me dá calafrios ela.
Eu me lembrei do meu pai. Meu pai sempre me dizia, quando mais novo, que eu deveria muitas vezes fazer as vontades da minha esposa. Pensei bem nessa questão, tentando ir na lógica da coisa, ainda mais sendo um professor de matemática para adolescentes. Marjorie já estava fazendo muitas das minhas vontades desde que nós nos casamos. E olha que éramos jovens.
— Você pode se apoiar em mim, minha querida — tentei ser o mais romântico possível quando estendi minha mão para ela — Assim, não terá o que temer.
Marjorie me encarou com seus olhos castanhos pequenos. E, então, gargalhou.
— Isso não faz muito o seu estilo, bobo! — sua mão delicada tocou a minha, apesar de sua fala.
Desse jeitinho, nós fomos até o nosso quarto. Eu fiz o possível para que fosse agradável para nós dois. Tinha uma lâmpada apenas no teto, um móvel para poder pôr um relógio-despertador e algumas anotações para a aula da segunda, o dia seguinte. Possuía um aromatizante, um de lavanda que ela adorava, e também alguns porta-retratos nossos no chão. E no meio de tudo isso, nossas malas com nossas roupas e coisas e também um colchão solitário.
— O que achou? — perguntei dela.
Ela deu um de seus sorrisos adoráveis e comentou comigo:
— É, dá pra viver…
Demorou seis horas para que a noite viesse na cidade de Manaus.
— Querido, você não vai dormir? — perguntou Marjorie enquanto eu estava com meu celular ligado, falando com alguns colegas professores e corrigindo algumas provas.
— Daqui uma hora… — eu disse para ela.
— Você vai ficar com os olhos fundos desse jeito… — Marjorie insistiu, preocupada — Não será nada legal para sua imagem.
Eu a olhei. Marjorie era uma mulher pequena, mas de força sem igual. Ela queria que eu desse certo na minha carreira, que eu fizesse sucesso. Não para Marjorie se mostrar: ela já era uma ex-socialite, que abandonou a antiga vida para viver de um novo sonho, ser dona de casa. Marjorie queria ser mãe, Marjorie queria um bom esposo e Marjorie queria ter a própria vida. Foram mudanças que ela teve após muitas reflexões durante o tempo do nosso namoro. Marjorie queria mesmo provar para seus pais, gente bastante rica, que seu marido era um bom homem.
Refletindo em Marjorie e em seus olhos que eu tive o impulso de a beijar. E eu o fiz.
— Vá dormir, mulher, que ainda está cedo.
Marjorie me lançou um sorriso fraco e se acomodou no colchão. Voltou o rosto para o outro lado e fechou os olhos.
Eu passei a trabalhar nas provas. Haviam raciocínios brilhantes, medianos, criativos e os que poderiam melhorar. Eu gostava bastante dos meus estudantes e por isso eu fazia de tudo para não ser o Mister Simpatia. Existiam estudantes que me odiavam por eu pegar pesado. Mas era um modo que eu demonstrava que eu me preocupava.
Tive que fazer uma pausa para ir ao banheiro. O banheiro ficava no segundo andar. Vestido de um par de meias e meu pijama, eu fui até lá com os passos com o cuidado de uma pena. Embora eu tivesse cuidado, o chão de madeira fazia seus gemidos a cada passada. Eu me perguntei mentalmente se eu havia engordado e quantos quilos.
Na volta, notei que Marjorie estava sentada no colchão. Ela estava se abraçando.
— O que houve, Marjorie? — eu perguntei, ajeitando os meus óculos.
— Essa casa faz muito ruído — respondeu ela — Parece que há peças na minha cabeça.
— Deve ser pela casa querer que você feche os olhos — eu brinquei, embora não sorrisse.
Ela riu.
— Deve ser — voltou a ficar deitada, mas não fechou ainda os olhos — Vou tentar dormir de novo. Dessa vez, vê se não me assusta de novo!
Ficamos na casa por meses e meses, até se tornar um ano. No primeiro ano, Marjorie me confessou que sentia estranheza consigo mesma. Eu perguntei o motivo e ela me revelou “Algumas vezes, sinto que minha cabeça não está bem”. Passei a me preocupar. A família de Marjorie possuía um histórico de psiquiatras e internos de hospital psiquiátrico. Eu já presenciei o segundo caso e não me fez nenhuma impressão agradável a ideia de que Marjorie viesse a ser “mais um deles”. Eu estava juntando minhas economias de aulas extras para vestibulares. O objetivo inicial era comprar um carro, como nós dois costumávamos usar ônibus ou uber para nossos afazeres. Eu passei a usar esse dinheiro para pagar consultas com um dos melhores psiquiatras de Manaus.
Mesmo assim, não foi possível evitar que pequenos acidentes vasculares cerebrais acontecessem em Marjorie. Foi tarde demais, já que ela passou a perder memórias, mudar a personalidade para a de uma criança e não fazer coisas que pessoas normais tem a habilidade de fazer.
— Oi, Marjorie, minha querida! — eu disse em uma época que a cama era mais confortável.
Ela estava penteando os longos cabelos loiros tingidos quando me perguntou:
— Quem é você?
— Quem sou eu? — eu falei — Eu sou seu marido!
— Marido… — e ela fez força com os olhos, como lembrasse com muita dificuldade de algo — Ah, marido — os olhos dela tinham um brilho do passado, mesmo que por um instante.
Mas ela não sabia mais qual era meu nome. Só sabia que possuía um marido. Era só.
— Eu peço demissão — foi o que eu decidi depois desse episódio, indo para cada escola que eu lecionava.
Uma de minhas colegas disse:
— Por quê você não vai mais ensinar, Rafael? — quis saber a outra professora.
— Marjorie não lembra mais meu nome — respondi, uma das mãos em punho — E tenho que prestar mais atenção nela.
Não era culpa minha, eu sabia na superfície. Mas no fundo do fundo, eu me culpei por não ter precavido antes a situação. Eu havia feito de tudo e, no final, nada parecia ter adiantado.
Ver ela em estado infantil novamente, tão frágil, estava me matando. Marjorie passou a enxergar coisas que não existiam. Eu não tive outra escolha, pois sozinho ou com a ajuda de meu único familiar vivo não adiantava. Resolvi chamar a família de Marjorie.
E eles vieram.
— Minha filha — disse o empresário, pai dela — não lembra mais das pessoas?
— Ela apenas lembra de algumas — respondi — Isso porque eu tenho a lembrar sempre quando posso.
— Posso providenciar uma cuidadora para ela — o pai dela disse — Eu não tenho tempo. Tampouco a mãe dela tem condições para cuidar dela.
— Ela não pode, sei lá, ajudar? — eu queria saber — Ela é mãe, afinal.
— A mãe de Marjorie não pode andar desde que teve um acidente em São Paulo — revelou o homem, sério.
— Oh — eu fiz.
— Mas posso assegurar videochamadas entre vocês três — prosseguiu o pai de Marjorie — Você, Marjorie e ela. É certo que a mãe de Marjorie irá gostar de falar com a filha mais vezes.
Alguns primos de Marjorie instalaram casas no nosso bairro, Cidade Nova, para poderem vigiar também a prima mais de perto. Eu os conhecia pela infância. Eles não gostavam de mim, mas a amavam, como sempre. Eu não me preocupava se me odiassem, eu só queria ajuda, eu só queria que ela vivesse bem e por mais anos.
— Marjorie, querida… — em uma das videochamadas, a mãe de Marjorie estava com lágrimas nos olhos.
— Quem é? — quis saber Marjorie, quase desinteressada.
— Sua mãe — respondi com paciência.
— Ah, mamãe! — disse ela, de repente alegre como uma criança.
— Ela está muito bem — a mãe de Marjorie elogiou, pois sempre gostou de mim como amigo de sua única filha — Esses vestidos dela… Não sei onde você os arranja. Combinam muito com minha filhota fofa.
— Eu os arranjei com uma costureira do bairro — eu disse para a mulher, observando pelo canto de meus olhos azuis a cuidadora conversar baixinho com Marjorie — Achei por bem ela vestir vestidos. Ela amava vestidos.
A mãe de Marjorie fechou os olhos, inspirou o ar e afirmou com segurança:
— Sim — confidenciou — Ela gostava muito de vestidos, eu via.
— O que aconteceu? — eu inquiri da cuidadora, pois Marjorie estava investindo muito em conversar com ela.
— Marjorie disse — a cuidadora, quem se chamava Sandra, contou — que tem uma vozinha na cabeça dela que disse que ela tem que segurar a língua.
— Bom — eu acariciei o rosto da minha mulher — diga para essa voz que eu sinto falta de nossas conversas.
Marjorie, com certeza instintivamente, sorriu. Estava acostumada naquele dia com a minha presença.
Chegou o Natal do segundo ano. O segundo ano naquela casa, a casa de madeira. Ficamos de ir para a casa do pai de Marjorie, onde se reuniria a sua família. Havia quem gostasse dela, havia quem disfarçasse que gostava dela apenas para ter a simpatia do pai e havia quem não gostasse abertamente da mulher-criança. Da casa, foram soltados fogos de artifício. Marjorie ficou encantada com eles e passou a lacrimar sozinha.
— Marjorie? — eu a questionei.
— Rafael — ela não me respondeu, mas falou.
— Rafael é meu nome — eu apontei para meu peito, esperançoso.
— Rafael — ela voltou a falar, algumas lágrimas caindo de seus olhos — Eu não lembro quem é esse Rafael…
Minha teoria era que ela se lembrou, mesmo que por um breve instante, de nossa infância. Nas festas juninas, costumávamos contar sobre nossas paqueras na Ponta Negra, lá na casa do seu pai, e ver os fogos de artifícios juntos. Para completar esses dias, também fazíamos barquinhos de papel em poças de água e passávamos a observar os barcos afundarem. Marjorie costumava brincar que os barquinhos de papel ofício eram como se fossem a vida. Um tempo, de pé, vivos. Outro tempo, caídos, sem vida.
Uma lágrima saiu de um dos meus olhos ao pensar na possibilidade de Marjorie morta.
— Isso dói — eu sussurrei para mim mesmo.
Demoraram três duros anos para que Marjorie fosse embora. Em seu funeral, vi o seu rosto no caixão. Ela estava com um sorriso desalinhado e feliz. Em seu descanso eterno, creia eu. Nesse dia, chorei demais de saudade. Acho que chorei talvez mais do que seus pais ou do que seus primos, como ela havia morrido em casa. Em meus braços. Era um sacrifício viver depois disso.
Com a morte de Marjorie, não havia o que me segurasse para não trabalhar. Recomecei o meu trabalho como professor de Matemática em escolas públicas. Não namorei. Não me casei de novo. Muitas vezes, não trabalhei muito bem, já que às vezes eu tinha a sensação de ter um abraço de Marjorie ou de ouvir um grito seu como se ela estivesse me observando em estágio de criança.
“Marjorie… Marjorie… Você não foi embora por eu ainda querer o seu amor?”, uma vez me peguei pensando depois de conversar com uma psicóloga simpática, “Me deixe embora logo, por favor”. E lágrimas invisíveis escorreram de mim aos 57 anos. “Eu não demorarei a ir embora”.
Em uma noite de Natal, como aquele tempo da vaga lembrança dela dos fogos de artifício e do meu nome, eu estava deitado na mesma casa de madeira da Cidade Nova. Eu possuía 58 anos. Desta vez, a velha casa estava reformada, mas tinha o mesmo ar assombrador de antes. A igreja mais próxima tinha cânticos belíssimos e não possuía instrumentos tocando. Era apenas a voz me guiando pela noite adentro.
Eu vi de relance alguém sair da porta. Era Marjorie, com o mesmo vestido azul que vestiu quando foi enterrada. Desta vez, ela parecia estar bem consciente. Um sorriso travesso brotou de seus lábios. Eu abri a minha boca para falar, mas ela fez menção para eu ficar em silêncio. E ela desapareceu.
Eu não senti mais vontade naquele momento. A minha vontade era fraca. Meu corpo estava fraco. Minha alma estava fraca. “Espere, Marjorie”, eu pensei antes de dar meu último suspiro, “Vejo você já já”.
E eu fui encontrado morto por um vizinho, quem estranhou que eu não saí de casa por três dias. Não havia parentes que pudessem chorar por mim, apenas meus ex-colegas de trabalho e meus estudantes. Eu era um barquinho de papel caído, assim como foi Marjorie.
FIM.
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